(Pai aqui te ergo uma estátua feita de palavras)
Eu o meu pai a mosca e a vida
Lembro hoje o dia em que iniciei a minha aprendizagem acerca do valor e da fragilidade de uma vida.
Lembro hoje o choque e tristeza do meu primeiro contacto com a morte e lembrar-me-ei sempre a presença segura, protectora e carinhosa do pai junto de mim.
É uma história estranha pois as personagens são eu, o meu pai e uma mosca.
É importante que fale um pouco desse homem que aparenta ser a personificação da própria força, a voz grave, o olhar penetrante, a presença segura, a firmeza das opiniões, tudo, tudo nele parece dizer:”eu sou forte”: e é!
É também cheio de pequenas fragilidades invisíveis aos olhos de quase todos, até dos que lhe estão mais próximos, mas desde criança claras como a mais límpida das águas para mim.
De inteligência e sensibilidade muito acima da média, as suas ambições para mim também o eram.
Recordo as vezes em que ainda muito criança, 6, 7 anos me levava a ver o mar. Era um momento só nosso, meu e dele.
Só nós os dois, sentados nas rochas olhando o mar. O meu pai falava-me dos mistérios da vida sabendo que eu era ainda muito nova para o entender. Costumava dizer: "Eu sei que não entendes ainda, mas as crianças memorizam tudo e ao longo da vida vais-te recordar destas nossas conversas. Vais recordar o que o teu pai te dizia e formar as tuas próprias ideias."
O meu pai tem esta bonita capacidade de apaixonadamente defender o seu pensamento até à exaustão, sem nunca o impor. As conversas comigo enquanto criança terminavam sempre com: “Um dia vais entender o que te tenho tentado ensinar, e ou me dás razão ou me achas um louco, o importante é que te vás lembrando do que tenho tentado ensinar-te.”
E tinha razão ao longo da vida com muita frequência a memória traz-me de volta a voz do meu pai e as coisas de que me falava ali nas rochas olhando o mar.
Naquele sábado estava toda a família reunida. Nessa altura eu vivia com a minha avó a minha tia e o meu único irmão. Os meus pais tinham ido passar o fim-de-semana connosco e estávamos todos reunidos à mesa de jantar em volta um dos soberbos petiscos que só a minha avó sabia cozinhar. Nesse tempo o meu pai era um homem bem disposto, e para mim e o meu irmão nada podia ser melhor do que ter os meus pais por perto. Eram jantares alegres e divertidos muito marcados pela fortíssima presença do meu pai.
Não se riam mas a queda de uma mosca moribunda junto do meu prato deu inicio a uma das minhas maiores e mais precoces lições de vida.
Acreditem que a angústia sinto-a ainda hoje, tal e qual como sente angustia uma criança; dramáticamente, com uma profunda e asfixiante tristeza, como se o seu pequeno mundo fosse terminar.
A mosca caiu junto do meu prato agitando as asas e as patas debatendo-se teimosamente com a morte.
Os meus olhos olharam e não desviaram. O meu olhar infantil viu e ali ficou parado. Era o meu primeiro contacto com a morte e toda eu parei. Fiquei imóvel, silenciosa curvada pelo respeito a algo que eu pressentia estar estava além de mim e que não sabia entender. Lá estava ela ali esperneando na toalha branca, lutando com toda forças por aquele pedacinho de vida que lhe restava. Achei que podia ajudar. Achei que devia ajudar. Achei que tinha de ajudar. Quis ajudar. Quis com toda a energia que tem as crianças salva-la. No fundo acho que sempre fui assim. Sempre acreditei que os milagres vinham da força com que acreditávamos e lutávamos.
E como Lutamos!
Eu e aquela pequena e “insignificante” mosca lutamos muito naquela noite
Ela pela própria vida. Eu pela vida dela.
Peguei-lhe devagar e fiquei , por momentos, apenas olhando, como que buscando nela a resposta. Ajuda-la a tentar recuperar. Faze-la sobreviver, mas como? Como se ajuda uma mosca? Que se passava com ela? O que lhe tinha acontecido? A pobre mosca esperneava no meu dedo lutando contra o fim com todas forças que lhe restavam. Disse ao meu pai que devia ter sido um daqueles sprays usados pela avó para eliminar os insectos que naquela zona existiam em abundância.
” Vou dar-lhe água e vai ficar boa não vai pai?” Perguntei ansiando o sim que não tive.
O meu pai afirmou não saber mas que se eu quisesse podia tentar.
“ Tenta filha, nunca se sabe, a vida é sempre um mistério” disse.
Não terminei o jantar.
Levei a mosca para a casa de banho no dedo e molhando o outro dedo fui com muito cuidado tentando fazer com que bebesse a água.
Na sala a minha avó queixava-se de eu não ter terminado o jantar. O meu pai respondeu-lhe:
“Deixa ela está aprender o que é a vida. Vai-lhe doer, mas estamos aqui com ela.”
“Deixa-a tentar salvar uma vida.”
“Mas Mário é só uma mosca” dizia querida e cruel a minha avó.
“Não deixa de ser uma vida.” Respondeu o meu pai sério.
É difícil descrever as horas que se seguiram. Eu e ela (a mosca lutadora) juntas num combate que nessa idade eu acreditava ser possível ganhar. Ela bebeu a água dos meus dedos, muito devagar, gotinha a gotinha. Não sei se aconteceu realmente, se a vontade de a ver reagir me enganou, mas a verdade é que me pareceu que aquelas minúsculas gotas de água, sorvidas por ela em minúsculos golos ao longo de várias horas, a estavam a fazer reagir. Pôs-se direita, com as patas limpou as asas e ali ficou no meu dedo parecendo descansar, recuperando as forças para voltar a voar. Continuei com o dedo esticado, tentado olha-la nos olhos, se é que isso é possível entre uma pessoa e uma mosca, não sei mas eu ia jurar que sim. Era imensa a minha alegria. Achei por algum tempo que lhe tinha salvo a vida. Sentia-me contente e orgulhosa. Eu e ela tínhamos ganho o difícil combate. Afinal tudo parecia ter voltado a ser maravilhoso. A voz dos meus pais na sala. Na cozinha o som da água correndo , dos pratos e dos tachos, a minha avó e a minha tia como sempre uma lavando a loiça enquanto a outra limpava. O meu irmão já dormindo um sono descançado, era mais pequenino e tinha de se deitar cedo. E ela ali no meu dedo viva. Salva por mim.
Tudo parecia perfeito e eu estava maravilhada por ter salvo uma vida.
Estava enganada.
Nada tinha voltado ao normal. Nada estava perfeito. E eu não a tinha salvo.
Em poucos minutos a mosquinha morreu. Ali no meu dedo. Como se se tivesse levantado apenas para morrer de pé. Orgulhosamente depois da dura batalha com a morte.
Ela morreu e eu chorei.
Chorei muito.
Muito e convulsivamente.
Horas a fio.
O meu pai veio para junto de mim.
Disse que sabia que aquilo ia acontecer mas quis deixar-me perceber como a vida é frágil. Quis que eu entendesse que quando prestamos atenção uma vida é sempre uma vida. Aquela mosca tinha sido importante para mim porque lhe dei atenção. Porque olhei. Porque vi. Porque algo fez com que caísse junto de mim. A minha dor era maior porque eu tinha combatido lado a lado com ela. Já tinham tantas morrido perto de mim sem eu sequer notar. Naquele dia eu tinha assistido à beleza e ferocidade do combate final. Todos os seres vivos, um gato, um pássaro, um peixe ou até uma simples mosca, todos sem excepção lutam ferozmente contra a morte …
Memorizei estas palavras de meu pai e todos os acontecimentos desta noite para sempre.
Chorei convulsivamente abraçada ao meu pai até de madrugada.
Relembro com carinho que ele não saiu nunca do meu lado.
Levou-me para a cama, e ali ficamos, eu chorando e ele abraçando-me e fazendo-me festas na cabeça. “ Sei que te custa muito, viste a morte, lutaste com ela e perdeste. Com a morte podemos travar a mais dura das batalhas. Podemos adiar a derrota. Podemos preparar-nos para um fim digno e com alguma doçura até. Vencer a morte, isso nunca!”
Foi a tua primeira batalha perdida.
Sentiste como a vida é frágil.
Foi uma noite difícil mas o meu pai tornou-a das mais importantes e mais belas.
Mostrou-me que está sempre ao meu lado quando eu preciso sem julgamentos de valor de nenhuma espécie.
Aquela mosca foi importante para mim e eu era importante para ele, isso bastou.
Hoje que já sou adulta o meu pai diz que a única certeza que temos na vida é a morte.
Mais uma vez tem razão.
Hoje apesar do medo natural e humano da morte sei que morrer é tão natural e tão belo como nascer.
O meu pai que não é perfeito mas é sábio.
O meu pai não está sempre presente mas está sempre perto.
O meu pai não me vê sempre mas olha sempre por mim.
Como a sombra e a luz, a vida e a morte... não estão juntas mas estão sempre perto.
A sua presença é constante.
Isabel
" A vida e a morte"
Gustav Klimt