sexta-feira, setembro 28, 2007

Nota: como creio que os meus leitores habituais se aperceberam estou numa fase nova da minha vida.
Uma fase de esperança.
Estou decidida a tentar afastar as tristezas, decidida a respirar melhor, decidida a deixar entrar o ar, decidida a dar a mão ao meu príncipe e com alguma sorte e muito empenho dos dois quem sabe partir para longe para alcançar o nosso sonho partilhado.
Temos muito amor e muita vontade, o resto temos esperança que vá surgindo, não temos pressa, a vida inteira está nossa frente e os caminhos são para ser caminhados.
Apesar desta fase boa continuo a ser alguém que escreve e ama a escrita, por isso continuarei a escrever e a postar aqui excertos desta história a que chamei “Começar de novo”, na qual, aparentemente, a linguagem é mais dramática e bem menos esperançosa.
Mas escrever é isto.
E eu bem ou mal escrevo e quero continuar a escrever.
Começar de novo
Transtorno Dissociativo de Identidade


Puta!
Puta!
Puta! Gritava Ana baixinho.
Olhava fixamente o televisor e repetia.
Puta!
És uma puta!
Tu e todas as outras iguais a ti.
O que é que tu sabes disso minha cabra?
Perguntava em fúria, engasgando-se na voz do pensamento.
Afogando-se em mares de lágrimas engolidas a seco.
Sufocando em prantos de choros no fundo dos interiores.
No rosto, um sorriso.
Vazio.
Morto.
Sem expressão mas um sorriso.
Quem disse que um sorriso tem de sorrir?
O sorriso de Ana era um sorriso que não tinha sorriso.
Era sorriso indecifrável mesmo para os mais atentos.
Mas quem esteve alguma vez atento?
Quem está atento?
Quem está atento à Ana?
Quem a olha?
Quem a vê?
Quem a ouve?
Quem a escuta?
Quem a toca?
Quem a sente?
No ecrã uma senhora de aspecto saudável acompanhada de uma frieza bem disposta falava sobre Ana, sobre ela sobre outras como ela.
Ana sabia como chamavam àquele tipo de frieza: chamavam-lhe profissionalismo.
Puta, profissional!
És mais puta que eu.
Não fazes ideia do que falas.
Não saberás nunca.
A voz no televisor falava assim:
Na vida real, a chamada dupla personalidade assume a designação médica de Transtorno Dissociativo de Identidade.
A característica essencial do problema é a presença de duas ou mais identidades, que assumem o controle do comportamento alternadamente.
Actualmente não existe o diagnóstico de múltiplas personalidades na psiquiatria.
Não me digas oh idiota! Pensou Ana espumando de raiva.
Fantástico!
Sublime!
Éna pá, grande avanço, mudaram-lhe o nome. Não caibo em mim de contente!
TDI é a abreviatura não?
Que maravilha!
Se eu tivesse sido violada hoje e não há tantos anos atrás podia ter dito ao monstro:
Olha lá meu animal, vê lá não me faças isso que posso ficar a sofrer de Transtorno Dissociativo de Identidade!
Tenho a certeza que o palavrão o teria assustado, delicadamente tirava o pau duro de dentro de mim, guardava-o cuidadosamente dentro das calças sebentas, fechava a braguilha com pudor e ainda dizia-me educadamente:
- Oh menina desculpe, eu não fazia ideia que lhe podia causar um transtorno dessa ordem.
Eu até ia usar e abusar da menina até a rasgar de dentro para fora e de fora para dentro e lhe provocar uma autêntica sangria de entranhas, alma e coração até o sangue acabar por lhe escorrer entre as pernas por não caber mais dentro da menina. Mas por amor de Deus, jamais poderia voltar a olhar para mim próprio se lhe causasse um Transtorno Dissociativo de Identidade.
Não, isso eu nunca seria capaz!
Nunca, menina!
Nunca, nunca!
Eu não sou nenhum monstro.
Isto era o que diria o monstro se ouvisse o novo palavrão que tu e os outros como tu inventaram minha puta. Grita Ana em silêncio com a sua boca imaginariamente colada à boca que mexe no ecrã.
Ana já só vê a boca.
A boca agora ocupa toda a imagem do televisor.
A senhora continua a falar baixo pausadamente, profissionalmente, admitamos, ignorando os insultos que Ana lhe atira como pedregulhos de dor seca e endurecida pelo tempo.
Ana escuta a voz daquela enorme boca como se esta lhe berrasse tão alto como Ana lhe berra a ela.
Ainda assim, inclina-se ameaçadoramente para a frente como que para ouvir melhor.
Parece-lhe que na sala tudo se inclina com ela.
Tudo na sala se concentrou naquela voz.
A mesa, as cadeiras, o cadeirão grande, a estante cheia de livros, tudo se inclinou e parece magicamente equilibrar-se apenas nas pernas da frente, para ouvir melhor. Até os livros parecem misteriosamente manter-se colados à estante.
Tudo na sala está atento.
Tudo menos ele.
O marido de Ana.
Está sentado no sofá pequeno, tem a cabeça caída para traz, boca aberta, baba a cair pelos cantos e emite um ruído semelhante a um assobio.
Ana e a sua sala ignoram-no.
Uma vez por outra o assobio aumenta de volume.
Nessas alturas Ana aperta com força a almofada que tem no colo e pensa em como era fácil fazer parar o assobio se comprimisse a almofada com força e determinação contra o seu focinho de porco.
Não o faz.
A Ana, outra Ana, outra Ana mais ponderada, avisa-a que ainda não está na altura.
Ana aceita.
Acaricia a almofada com os longos dedos aparentemente calmos.
A almofada encarnada, fiel, obediente, nervosa, já tinha, qual cão, assumido posição de ataque ansiosa por satisfazer a vontade da dona.
Deixa. Fica para outro dia. O dia chegará. Havemos de matar o porco. Promete-lhe Ana.
A almofada encarnada, deita a cabeça no colo da dona de novo, deixa-se sossegar e facilmente esquece o assunto suspirando de prazer com as carícias daqueles dedos longos.
Os mesmos que um dia a levaram para casa e aos quais há-de ser fiel enquanto for.
As orelhitas encarnadas apontam também para o televisor.
Nunca se sabe.
A dona está atenta ao que aquela voz diz.
Está a chamar-lhe nomes feios.
Poderá ser necessário agir.
Tem de estar preparada para ser atirada com força contra aquela senhora com ar de falsa simpatia que todos na sala escutam tão atentamente.
Todos menos ele claro.
O porco.
O porco que há-de morrer um dia.
A voz na televisão continua dissertando sobre o mesmo tema:
As identidades contrastam entre si. Há sempre uma mais hostil, participativa e controladora em contraponto com a principal, digamos assim. Podem existir também as identidades que emergem em situações específicas, muitas vezes diferentes em idade ou género, vocabulário.
Ana ri à gargalhada.
És tão espertinha não és, oh doutora?
Olha, aqui a mais hostil sou eu, a mais controladora sou eu, e sabes que mais sou eu a principal.
E agora?
Explica lá, oh minha idiota!
Sempre, sempre, sempre!
Mania que vocês têm que sabem tudo.
Não sabem nada!
Nada!
A menos que venhas com uma daquelas verdades de La Palice de que a excepção confirma a regra.
Ana continua a rir.
Pois é aqui a cabra é a principal.
Eu.
E tu és uma puta que merecias que te acontecesse o que me aconteceu a mim.
Assim não falavas com tantas certezas, tantos sempres e tantos nomes pomposos de uma coisa que não fazes ideia nenhuma do que é.
A transição de uma personalidade para a outra dá-se geralmente de forma súbita e dramática e alguns indivíduos podem manifestar sintomas pseudo convulsivos nesse processo. Existem casos em que as identidades se conhecem e outros em que isso não acontece. Elas podem-se comunicar por vozes, que o paciente escuta, criticando-se umas às outras e entrando em conflito. Algumas vezes, uma ou mais identidades agressivas interrompem actividades para colocar outras em situações incómodas.
Incómoda és tu, minha puta. Berra Ana já levantada colada à televisão.
Ana grita e desta vez os gritos têm som.
Os olhos parecem sair-lhe das orbitas e as veias das têmporas dilatam e palpitam parecendo prestes a rebentar a qualquer momento.
Elas salvaram-me idiota!
As minhas Anas, salvaram-me.
Coisa que tu e os da tua laia não conseguiram fazer.
Nenhuma de nós incomoda as outras.
Nós ajudamo-nos.
Tu é que nos incomodas, Puta.
Tu e este porco aqui ao lado no sofá.
E sabes quem incomodou mais ainda: O MONSTRO!
Que nome pomposo arranjaram vocês para o mostro?
Espera já sei, Transtorno Compulsivo à Actividade Sexual não Consentida.
Boa?
Monstro violador não é bonito.
É linguagem pouco técnica não é?
Se um desses monstros transtornados te tivesse feito o que me fez a mim queria ver como lhe chamavas!
O tratamento baseia-se em medicamentos e terapia, com foco na resolução do trauma original.
As dificuldades de diagnóstico comprometem também o estudo sobre o transtorno. A hipnose é muito utilizada durante o tratamento, mas ainda não há um método definido. O processo de “desvencilhamento” das personalidades costuma durar cerca de cinco anos.
Não tenho cinco anos!
Eu não tenho cinco anos!
Eu não aguento 5 anos mais disto, puta! Gritou Ana.
Gritou tão alto que o marido levantou a cabeça do sofá, abriu os olhos e olhou-a.
Ana estava de pé em frente à televisão, com um braço erguido no ar segurando uma almofada encarnada.
Confuso, mole e ensonado perguntou-lhe:
Que fazes ai Ana?
Nada. Respondeu.
Voltou para o sofá, sorriu-lhe.
Vá, volta a dormir. Dormias que parecias um anjo.
Ele deu-lhe uma palmada na perna e voltou a fechar os olhos.
Eu não tenho 5 anos mas tu tens bem menos. Pensou Ana enquanto desenformava o sorriso.

(Continua)

Isabel

(Devido às muitas dúvidas causadas pelo texto publiquei uma nota explicativa nos comentários)

"Lágrimas indíziveis"
Fotografia de Álvaro M.M. Pereira

terça-feira, setembro 18, 2007

AR

É difícil arranjar novas palavras.
É difícil encontrar uma nova linguagem.
É difícil falar numa língua que não conhecemos.
O meu vocabulário sempre foi composto de palavras tristes.
A minha linguagem sempre foi a das pessoas tristes.
A minha língua sempre foi a tristeza.
E agora?
Agora voltei novamente a não saber falar.
Já não habita em mim a tristeza.
Foi-se grande parte .
Partiu.
Ou ficou e parti eu.
Seja como for a minha tristeza e eu separamo-nos.
Já não estamos juntas.
Não sei onde ela anda nem ela sabe de mim.
Voltaremos a encontrar-nos um dia, certamente. Com carinho e alguma saudade até iremos lembrar-nos dos muitos momentos que passamos juntas.
Esses momentos foram uma vida.
Esses momentos foram quase todos os dias destes dias que foram os meus 40 anos.
40 anos cheios de dias.
Dias e dias cheios de tristeza.
E agora?
E agora pergunto-me?
Não estou assustada como estaria outrora.
Também não estou calma.
Estou estupefacta.
Estou em estado de espanto perante o desconhecido.
Estou lentamente buscando novas palavras, aprendendo uma nova linguagem, tentando comunicar numa nova língua.
Estou feliz?
Não!
Mas nasceu em mim esperança de vir a estar.
Não sei como surgiu.
Parece ter vindo do nada.
Veio, chegou, instalou-se sem sequer dizer como se chamava.
Soube o seu nome sem a conhecer.
Isso foi o que mudou.
E isso muda tudo.
Esperança.
Esperança, palavra tão estranha quanto felicidade.
Esperança de ser feliz.
Que coisa é esta que nasceu e vai crescendo em mim e aos poucos?
Que coisa é esta que devagarinho vai tomando conta de tudo o que me era familiar e com igual vagareza me vai unindo a essa desconhecida de seu nome Esperança.
Nada sei dessa tal Esperança.
Nada sei dessa tal Felicidade.
Nem tão pouco sei do que estou a falar quando digo que sinto esperança de ser feliz.
Consigo visualizar algo a que chamo de felicidade presente nos próximos dias dos meus próximos anos.
Consigo visualizar tanto quanto é possível visualizar algo que não se conhece.
De facto não visualizo, imagino.
Imagino e vibro perante o que imagino.
Não preciso que a felicidade me aconteça.
Basta-me alguma paz.
Basta-me algum bem-estar.
Basta-me o fim da inquietação permanente.
Basta-me o fim do sufoco.
Basta-me o fim da asfixia.
Asfixiava-me o ar que vida me deveria dar.
E agora?
E agora?
Agora respiro.
Agora aos poucos respiro.
Vou respirando.
Há momentos em que até respiro fundo.
Respiro fundo e sabe-me bem o ar a entrar nos pulmões.
É estranho!
Tão estranho!
Nunca o ar que me entrou nos meus pulmões me fez sentir bem.
Passou a ser bom respirar.
Tantos anos, tantos dias, tanta desta vida já vivida, tanto deste passado já passado, tanto deste tanto que sou eu e eu? Eu nem respirar ainda sabia.
Para que servia antes o ar?
Que fiz eu todo este tempo?
Aprendi a falar sem saber respirar.
Aprendi a ler sem saber respirar.
Aprendi a escrever sem saber respirar.
Aprendi a gritar sem saber respirar.
Aprendi a amar sem saber respirar.
Aprendi a chorar sem saber respirar.
E de tanto chorar sem ar afoguei-me num choro sem lágrimas que dura há uma vida.
Apenas uma vida.
Só uma.
Não é muito, é uma vida apenas.
Acontece que essa vida é a minha.
A minha vida.
É estranho!
Tão estranho!
Respiro fundo.
Bebo o ar como um refresco fresco em dia de calor, e sabe bem.
É estranho!
Tão estranho!
Quanta esperança pode dar o simples acto de respirar?
Toda.
Toda a esperança do mundo a quem nunca respirou.
Tudo muda.
Tudo mudou.
Respirar, trouxe paz.
A paz trouxe bem-estar.
O bem-estar trouxe um sorriso.
Um sorriso trouxe mais sorrisos.
Sem saber como surgiu a esperança de uma possível felicidade.
Será a felicidade mais que respirar bem?
Viver bem. Viver em paz. Viver sorrindo.
Algo me diz que a felicidade é isso.
Apenas isso.
A mim que nunca fui feliz, algo me sussurra cá dentro que a felicidade é isso.
Apenas isso.
E isso é tanto.
Tão simples e tão difícil.
Quem sabe serei feliz um dia!
Quem sabe.
Não importa.
Basta-me a esperança.
Basta-me respirar.
Inspirar.
Expirar.
Ar que entra.
Ar que sai.
Respirar
Tão simples.
Tão bom.
E eu que não sabia!
Inspirar
Expirar
Respirar é isto.
E é tão bom.

(Isabel)


"Verde esperança"
Fotografia de Arraial d'Ajuda