sábado, janeiro 27, 2007

Começar de novo

A primeira partida
Vamos espreitar pela fechadura de uma porta.
É a porta de um quarto.
O quarto está iluminado apenas por um acidental laivo de luz que timidamente surge por entre uma pequena falha nos estores completamente cerrados.
Na penumbra há um drama ainda adormecido.
22h e 22m marca um relógio de pulso, num pulso que ainda dorme.
Há roupas espalhadas pelo chão.
CDs espalhados por cima das roupas.
Há muitas velas já apagadas aleatoriamente distribuídas pelo quarto.
Há 1 garrafa vazia.
2 copos.
Um ainda de pé encostado à mesa-de-cabeceira, outro caído sobre o tapete verde agora manchado de um vermelho muito escuro. Vermelho tinto de vinho ou de sangue.
Uma capa de Cd ainda com vestígios de cocaína.
Branca.
Neve.
Branca de neve.
Parece uma história infantil.
Pura.
Parece e é.
É uma história de pura ingenuidade.
Uma capa de Cd com vestígios de procura vã.
Inspiracion-Espiracion de Gotan Project
Uma nota enrolada.
Um cartão do ginásio.
Um homem nu dormindo abraçado a uma almofada.
Parece uma criança.
Parece uma criança dormindo com medo do sono.
Parece uma criança assustada.
Parece uma criança procurando na almofada o conforto que o sono não dá.
Parece um homem com medo de acordar e perceber que já não é criança.
A imagem faz antever o drama.
O quarto tem duas portas.
Uma dá para o corredor, outra para a cozinha.
Ambas estão fechadas.
O quarto tem duas janelas.
Uma dá para as traseiras.
A outra para um pequeno pátio lateral, agora albergue de gatas vadias que ali vão ter as crias e ali ficam até estas se tornarem gatas independentes e como suas mães irem tambem vadiar. Buscando o que de bom a vida de vadiagem tem para dar: a liberdade! A fome e o frio são compensados pela liberdade em pleno. Livres são todos os gatos mas nenhum é tão livre como o gato vadio.
Ambas as janelas estão fechadas.
O quarto tem 2 cortinas, uma em cada uma das duas janelas.
Na janela das traseiras uma cortina coberta de círculos em tons de verde, laranja e preto, na janela que dá para o pátio uma cortina lisa cor de laranja.
Há uma mistura de intensos cheiros, que condensados naquele pequeno espaço fechado tornam o ar quase irrespirável.
Cheira a perfume.
Cheira a incenso.
Cheira a cera derretida.
Cheira a vinho tinto.
Cheira a suor.
Cheira a prazer.
Cheira a lágrimas.
Cheira a gritos.
Cheira a sexo.
Cheira a desilusão.
Cheira a dor.
Cheira a raiva.
Cheira a morte.
O cheiro faz antever o drama.
O homem nu que parecia ter medo de acordar está lentamente a despertar.
A cabeça pesa-lhe e as fontes latejam anunciando a ressaca.
O corpo sente o cansaço e a dor do prazer que não recorda.
A boca seca ainda tem o gosto a vinho, ainda tem o gosto de outra boca, ainda tem o gosto de outra língua, ainda tem o gosto de outra saliva.
Procura um lenço apalpando debaixo da almofada, precisa conseguir respirar.
Assoasse. No lenço restos de uma papa branca misturam-se com algum sangue.
A amnésia é quase total.
Olha para o lenço e lembra que a cocaína tinha sido particularmente gulosa nessa noite.
Preocupa-o não recordar mais nada.
A experiência diz-lhe que o milagroso pó branco tem o poder de trazer à tona o que há melhor e de pior em nós.
Tem um arrepio que não consegue identificar se é frio ou mau pressentimento.
Está assustado.
Esfomeado.
O estômago parece rosnar-lhe exigindo alimento.
Tem frio.
Procura algo para vestir.
Estende a mão para um roupão preto que vê no chão junto à cama.
Veste o roupão.
Levanta-se devagar.
Que noite, deve ter sido esta! Pensa.
Dói-lhe tudo. Até o coração e não se lembra porquê.
Olha para o relógio.
22.45.
Será possível?
A que horas se deitara?
Teria dormido um dia inteiro?
Porque não se recorda nada?
Está habituado aos excessos de álcool e cocaína mas nunca lhe aconteceu não se lembrar.
Desta vez é diferente.
Cada vez que o cérebro se esforça para trazer de volta as memórias dessa noite, sente uma dor aguda dentro da cabeça, como se batesse com toda a força contra uma dura e impenetrável barreira.
Que se teria passado?
O estômago morde-o por dentro.
Decide não pensar e abre a porta que dá para a cozinha, já visualizando na imaginação 2 gordurentos ovos estrelados, 2 fatias de bacon frito mais gordurentas ainda, pão aquecido no forno e barrado com muita manteiga, qualquer coisa muito doce para sobremesa e muita cerveja para a ressaca.
Uma fórmula mágica que ele e Beti tinham criado e se tinha revelado infalível.
Preparou tudo tão rápido quanto o cansaço e as dores na cabeça e no corpo lhe permitiram.
Colocou tudo num tabuleiro.
Pegou no tabuleiro e entrou no quarto desta vez pela outra porta, a que dá para o corredor.
Entrou no quarto lambendo os beiços, ansiando atirar-se para cima da cama e regalar-se com a refeição que a fome e a ressaca faziam parecer um verdadeiro festim.
Entrou no quarto e desta vez viu o quarto real, tal como ele se tinha tornado nessa noite.
O drama tornou-se visível.
Tomou forma.
E entrou dentro dele para de dentro dele não sair nunca mais.
23h e 12m.
Com as mãos a tremer pousou o tabuleiro sobre a cama e os olhos sobre a morte.
No quarto agora o drama espalhava-se por todo o espaço, ocupava todos os recantos, subia pelas paredes, rastejava pelo chão, enrolava-se dengoso entre os lençóis, trepava pelas cortinas, balançava pendurado no candeeiro.
No quarto o drama brincava inocente e matreiro.
No quarto há 2 homens.
Um morto e um vivo.
O vivo está sentado na cama, imóvel, com os olhos fixos no outro homem.
O homem morto está morto caído aos pés da cama.
Tem a cara virada para a porta e a cabeça repousa sobre uma enorme poça de sangue.
Junto ao corpo, frio e indiferente, está o causador daquela morte: um enorme cinzeiro de pedra.
É um cinzeiro de pedra maciça, cinzento muito escuro, rudemente talhado.
Tem aspecto de ser um cinzeiro de peso, o ideal para matar com um golpe apenas.
O homem vivo continua com os olhos postos sobre o homem morto e no seu olhar não parece existir mais vida do que no olhar morto do homem morto.
Assim ficam os dois por muito tempo.
O morto porque não tem alternativa.
O vivo porque gelou.
Não sente nada.
Nem fome.
Nem cansaço.
Nem dor.
Nada.
Lá fora os gatos pequenos brincam ruidosamente. Podemos ouvi-los aprendendo a lutar uns com os outros em brincadeiras de faz de conta. Miam com alegria e entusiasmo enquanto as mães aproveitam para descansar e reunir forças para a próxima mamada. Que força tem as mães na natureza! E as crias, que sorte! Como deve ser bom poder brincar despreocupadamente, sentindo que se está protegido pela maior força da natureza, a força invencível da maternidade.
O homem vivo continua imóvel, petrificado.
Os gatos lá fora zaragateiam... eleva-se o ruído, na rua, no quarto, na alma.
O homem chora.
Silênciosamente.
Ele chora e o miado dos gatos acompanha o seu silêncioso choro.
Não chora pelo homem morto.
Chora por si.
Chora o fim de uma ilusão.
Chora o fim de um sonho.
Chora a incerteza de uma vida, a sua.
Não o incomoda a morte do homem morto.
Incomoda-o tê-lo morto.
Incomoda-o ser um assassino.
Ele... um assassino!
Um sorriso surge por entre as lágrimas.
Ele o paneleiro, é agora um assassino!
Pena não poder contar no emprego, talvez assim o respeitassem.
O homem morto não o tinha respeitado.
Pensava ter amado o homem morto.
Agora que chorava junto ao seu corpo sem vida, sabia que não.
Não o amava nem o tinha amado nunca.
Mas dissera-o.
Agora a sua própria voz ecoava-lhe na lembrança.
A sua voz dizendo ao homem morto quando ainda estava vivo:
- Amo-te.
O homem vivo respondeu levantando-se, vestindo-se, pegando na chave do carro com intenção de o deixar ali, sem sequer o olhar nos olhos, sem sequer lhe dizer uma palavra.
Deixa-lo ali simplesmente, depois de ele lhe ter dito que o amava.
Matou-o por isso.
Não o podia deixar ir assim.
Só!
Tinha-lhe dito que o amava, como podia ele partir depois disso?
Como?
Não podia!
Pegou no cinzeiro e bateu-lhe com força na cabeça.
Matou-o.
Foi tão rapido! Tão fácil!
Caiu e ali ficou inerte no chão.
Não se lembra de mais nada.
Agora é um assassino.
Chorou um pouco mais.
Riu um pouco mais.
Depois foi buscar uma enorme mala preta que comprara numa feira, a maior mala que alguma vez vira. Gostava de viajar mas era vaidoso por isso era daqueles que custumava levar a casa atrás para qualquer lado. Era difícil transportar, quase sempre sozinho, as 3 ou quatro malas que sempre o acompanhavam quando viajava. Aquela mala gigante, com imenso espaço, com rodase fácil de transportar tinha resolvido todos os seus problemas antes e iria resolvê-los de novo.
Colocou a mala no chão ao lado do homem morto. Com uma força que desconhecia ter, que lhe vinha talvez do primário instinto de sobrevivência, conseguiu puxar o homem morto e todo peso da sua morte para dentro da mala. Com jeito foi capaz de moldar o corpo inerte ao formato da mala.
Limpou bem o sangue do chão. Colocou os panos ensanguentados e o roupão preto que tinha vestido junto com o corpo e fechou a mala para sempre.
Sentou-se na cama e comeu tudo o que tinha no tabuleiro, a comida estava fria mas era-lhe indiferente, sabia apenas que precisava de alimento para recuperar forças.
Levou o tabuleiro para a cozinha.
Cuidadosamente arrumou o quarto.
Juntou num saco pequeno algumas roupas e apenas os essenciais produtos de higiene.
Tinha de se tornar um homem novo. Pensou.
Puxou a pesada mala até á porta da rua.
Colocou o pequeno saco com as roupas ao lado da mala e foi tomar um banho.
Fez a barba perfumou-se, vestiu-se de forma prática mas não descurando a elegância.
Pegou na chave do carro, no maço de cigarros, no isqueiro Dupont ( presente dos pais quando acabara o curso) na carteira e nos documentos, incluindo o passaporte e colocou tudo no bolso do blazer bombazina castanho claro.
Abriu o estore da janela que dá para o pátio, abriu a janela e ficou por uns momentos, fumando e olhando os gatos vadios.
Voltou a fechar tudo.
Na sua mente apenas uma palavra: sobrevivência.
Arrastou a mala com as duas mãos pelas escadas abaixo, equilibrando o saco no ombro.
Colocou tudo no carro, com a força acabada de descobrir e sem olhar para trás partiu.
Conduziu com o propósito único de se livrar do peso daquela mala.
Livrou-se dela.
Livrou-se da mala, do homem morto e de um peso dentro do peito.
Atirou tudo ao mar.
Do cimo das rochas ficou a ver a mala preta desaparecer entre as águas.
A água limpa, purifica dizem.
Purificaria o homem morto e levá-lo-ia ao céu?
A ele nada o podia purificar.
Nada podia limpar o que tinha feito.
O meu nome é Carlos e sou um assassino.
existiriam reuniões para assassinos anónimos?
Sorriu tristemente.
Ninguém o podia ajudar.
Pensou de novo na palavra sobrevivência.
S-O-B-R-E-V-I-V-Ê-N-C-I-A
Entrou no carro e partiu.
Iria ser como um gato vadio. Procurando manter a liberdade. Tentando sobreviver.
Um homem só. Uma estrada. Um destino desconhecido.
Um novo começo talvez.
Agora apenas, partir.

(continua)

Isabel
" Open your eyes now"
Fotografia de grENDel

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Começar de novo

O local

Que força desconhecida os moveu?
Que mãos decididas os empurraram?
Que fios invisíveis os foram puxando até lá chegarem?
Até lá.
Ao local.
Ao local onde se vão encontrar.
Impelidos pelo acaso?
Obedecendo ao destino?
Seguindo a vontade de Deus? Dos Deuses?
Guiados por setas invisíveis aos nossos olhos do rosto mas que outros olhares, mais interiores, conseguem ver?
Setas indicando os caminhos que inconscientemente vamos escolhendo.
Algo.
Algo, não importa o quê, os levou lá.
Ao local.
Porque era ali.
O ponto onde o novo começo iria começar.
Algo os levou lá naquele dia.
Porque era aquele o dia.
O dia de começar de novo.
Foram chegando um de cada vez.
Saíram juntos quando foi hora.
4 horas e 25 minutos da manhã.
Essa foi a hora de começar de novo.
Faltam 12 dias, 2 horas e 38 minutos.
No local o relógio marca agora 2.13.
O local é uma cafetaria, de uma qualquer estação de serviço, de uma qualquer auto-estrada a caminho de um qualquer sítio.
São locais especiais as estações de serviço.
Mais que apenas pontos de passagem, são também pontos de partida, são também pontos finais.
O local agora está quase deserto.
Apenas uma mesa está ocupada.
Uma mesa num canto junto à janela.
Um homem de aspecto triste e cansado come sem apetite uma sandes e bebe um café, olhando fixamente pela janela.
Da janela vê-se um solitário parque de estacionamento.
Ele acha o parque de estacionamento tão solitário como a sua vida.
A mulher tinha arranjado um bom emprego no estrangeiro. Partira levando os dois filhos e todo o pouco dinheiro que ao longo da vida em comum tinham conseguido poupar.
Disse-lhe que aqui nunca ia passar da cepa torta e que queria começar uma vida nova longe deste país e longe dele.
Pediu-lhe para levar os filhos com ela.
Ele deixou. Não afastaria nunca os miúdos da mãe.
Talvez partissem mesmo para uma vida melhor. Uma vida que ele nunca lhes poderia dar.
Talvez um dia até viessem a ser alguém na vida.
E um dia, quem sabe, talvez ele conseguisse juntar o suficiente para os poder ir visitar.
Há 2 meses e 3 dias, desde que eles tinham partido que tinha criado no seu intimo um novo objectivo de vida: poupar para ir visitar os filhos antes que eles se esquecessem que tinham pai.
Não suportava a ideia de os filhos acabarem por o esquecer.
Não podia deixar que isso acontecesse.
Ele era o pai.
Ia poupar, poupar, poupar. Poupar para lhes provar o bom pai que era.
Poupar para conseguir ficar-lhes na memória.
Olhando através daquela janela recordava outros tempos, tempos em que não fora um homem solitário, em que tinha uma família alegre e ruidosa que o fazia sentir-se um homem realizado na vida.
Recordou a festa que era sempre que iam passar uns dias à terra. Os 4 no carro, a mulher bem vestida, com o cabelo bem arranjado, os lábios e as unhas pintadas. Os putos fazendo graçolas lá atrás, a mulher cantarolando a seu lado enquanto ele, homem de família, todo inchado de orgulho lhe punha a mão na perna roliça.
Era assim que ele gostava das mulheres. Com carnes.
Alguma vez voltaria a encontrar uma mulher assim?
Hoje todas queriam ser modelos e um homem não tinha onde agarrar.
Olhou em seu redor tirando pela primeira vez os olhos da janela.
A sala está deserta.
Ao fundo da sala, um longo balcão de vidro.
Atrás do balcão uma empregada insiste distraidamente em limpar o vidro, já imaculadamente limpo.
Passou os olhos por ela sem sequer reparar que era uma mulher.
Para ele uma mulher tinha de ser vistosa.
Como a sua era.
A que partira para longe.
A que junto com os dois miúdos fora a sua razão de existir.
Ela partira e ele ficara.
Que seria dele?
Que era de um homem sem uma boa mulher a seu lado?
Onde iria ele arranjar forças para um dia começar tudo de novo?
A rapariga invisível continua limpando o balcão.
É uma rapariga de óculos, baixota, bastante magra, com 20 e poucos anos.
Usa uma touca branca com riscas verdes deixando ver um pouco do cabelo acastanhado, desajeitadamente apanhado com um elástico.
Veste uma bata com mesmas riscas verdes e por baixo umas calças já tão desbotadas que distinguir a cor original se torna impossível.
Toda a roupa é larga impossibilitando a percepção das suas formas, do todo sobressai apenas a sua extrema magreza.
Nos seus gestos ausentes de vontade aparente, mais não há que uma repetição de movimentos que adivinhamos cuidadosamente aprendidos, bem interiorizados e já completamente mecanizados.
Nada nela tem beleza.
Nada nela tem vida.
Nada nela revela qualquer emoção ou paixão.
Ao primeiro olhar parece uma criatura totalmente amorfa.
Parece existir apenas.
Estar ali, nada mais.
Olhemos de novo.
Aproximemo-nos um pouco mais.
Que brilho é aquele lá no fundo dos seus olhos?
Não é fácil de ver.
Esconde-se atrás dos óculos e da timidez do seu olhar.
São muito pequenos os seus olhos.
Mas apenas os olhos são pequenos.
É preciso olhar bem, atravessar a barreira daquelas lentes, se olharmos veremos um brilho imenso iluminando aqueles pequenos olhinhos.
Quanta luz terá ela escondido dentro de si?
Quanta emoção, quanta paixão guardará cuidadosamente no mais íntimo do seu ser?
Quanto calor existirá por descobrir dentro daquele corpo magro?
Quanta vida viverá oculta naquela rapariga que nem vida parece ter?
Em que pensa a rapariga que, ausente, esfrega o vidro do balcão?
É sempre a última do seu turno a sair.
O rapaz da cozinha passa a noite a ver a noite passar.
Ás 7 em ponto corre para as traseiras.
Quando ouve a motorizada do rapaz arrancar ainda ela se mantêm ali, fardada atrás do balcão.
Antes de sair ajuda a rapariga que a vem render a colocar nas travessas os pastéis de nata para os pequenos-almoços. O rapaz deixa-os na cozinha ainda dentro do forno quente, acabadinhos de fazer. Depois sai a acelerar para casa.
É completamente apaixonado pela mulher e sabe que ela o espera.
Todos os dias têm apenas 15 minutos juntos.
Ele chega às 7.15. Ela sai às 7.30.
Tentam que as folgas sejam nos mesmos dias mas nem sempre é fácil por isso aqueles 15 minutos são ouro para eles.
A rapariga não sabe o que faz o rapaz sair todos os dias tão apressado.
Sabe apenas que é assim todos os dias há já quase dois anos.
Pensa que gostaria muito que hoje fosse igual a todos os outros dias.
Pensa numa maneira de em poucos minutos, entre a saída do rapaz e a entrada dos colegas do turno seguinte, retirar da vitrina e esconder na sua mala uns bolos e uns salgados, para levar com ela para casa.
Nunca o fez.
Sabe que é roubo e que está errado.
Mas quer muito ajuda-lo.
Nem que seja só uma vez.
Vira-o, nas traseiras do seu prédio pela primeira vez no dia anterior.
Estava a anoitecer e ele enrolava-se em velhos cobertores para depois se cobrir com caixotes de cartão, tentando assim sobreviver ao frio da noite.
Fora trabalhar com ele no pensamento, mas a falta de coragem não tinha deixado que nesse dia roubasse nada da grande vitrina para lhe levar.
Sobrava sempre tanto.
Sabia que a colega deitava fora as sobras assim que chegavam os bolos e salgados do dia.
Eram essas as ordens que tinham.
Por causa das inspecções dissera o chefe.
Ela sempre gostara de cumprir as ordens e o chefe metera-lhe medo com as inspecções mas ele não lhe saia do pensamento.
Hoje voltara a vê-lo, lentamente, repetindo o mesmo ritual. No fundo, tempo era a única coisa que não lhe faltava. Enrolava-se devagar nos velhos cobertores tentando tapar o corpo todo, depois cobria-se com cartão.
Desta vez cruzaram-se os olhares.
Ela viu nele um olhar pedindo entendimento. Não lhe pediu ajuda, não lhe pediu pena, pediu apenas que ela não o julgasse, que o tentasse entender.
Ela entendeu sem sequer saber o que havia para entender.
Ele viu nela um olhar cheio de doçura. Desde que vivia na rua ninguém o tinha olhado assim.
Sorriu para ela. Foi um sorriso triste mas com toda a doçura que também ele conseguiu por no sorriso.
Fora há tanto tempo que sorrira pela última vez que já nem se lembrava bem como sorrir.
Ela, comovida, devolveu o sorriso e envergonhada seguiu caminho apressadamente.
Uns passos à frente, não resistiu e olhou para trás. Viu-o já deitado, completamente coberto com cartões.
Quem diria que debaixo daquele monte de cartão ia dormir um homem.
Um homem como os outros. Nem mais nem menos.
Um homem. Um ser humano.
O coração doeu tanto que fez soltar as lágrimas que lhe viviam no peito. Não se importou. Deixou que fossem rolando por entre os óculos. Quando chegou à paragem da camioneta manteve-se afastada do resto das pessoas que esperavam em fila, quando o transporte chegou limpou os olhos com os finos dedos, respirou fundo e entrou. Deu os bons dias ao condutor que já conhecia de vista à bastante tempo e não se esqueceu de lhe perguntar se estava melhor da constipação.
Sentou-se quieta junto à janela vendo a vida a passar lá fora.
No pensamento apenas uma coisa: ele.
Ele.
Apenas ele.
Hoje tinha de conseguir.
Tinha de vencer o medo.
Tinha de lhe levar comida.
Ele estava magro e parecia ter fome.
Não queria saber os porquês, queria ajudar simplesmente.
Queria matar-lhe a fome.
Queria vê-lo sorrir de novo.
São 2. 19 da manhã agora.
Ela ainda não sabe mas hoje vai conseguir tirar comida da grande vitrina.
Ela ainda não sabe mas vai passar a fazê-lo todos os dias.
Ela ainda não sabe mas um dia vai ter coragem e convida-lo para comer na sua sala.
Vai dizer-lhe que lá estará mais quentinho.
Ela ainda não sabe mas vai faze-lo dali a 12 dias.
Ela ainda não sabe mas dali a 12 dias 2 horas e 32 minutos 3 pessoas, vão encontrar-se naquele local e ali as suas vidas vão começar de novo.
Ela ainda não sabe mas nesse dia não vai estar com a mente ausente como custume, vai estar presente e atenta.
Ela não sabe mas nesse dia vai reparar no que mais ninguém vai ver.
Ela ainda não sabe que o que vai ver lhe vai dar a coragem que tanto deseja um dia ter.
Ela ainda não sabe mas essa coragem vai fazer com que também a sua vida nesse mesmo dia comece de novo.
Ele ainda não sabe mas nesse dia vai ver o sorriso mais doce que alguma vez viu.
Ele não sabe mas esse sorriso vai ser para ele.
Ele ainda não sabe que vai ser ele a faze-la sentir-se pela primeira vez mulher.
Ele ainda não sabe que é ela que vai faze-lo sentir-se homem de novo.
Ela ainda não sabe mas 2 dias depois desse dia a policia virá ao local fazer-lhe perguntas.
Querer saber o que ela viu.
Ela vai responder que não viu nada.
Vão-lhe falar de um assassinato.
Vão perguntar-lhe por um Carlos qualquer coisa e mostrar uma fotografia.
Ela abanará a cabeça, indicando não o reconhecer.
Mas reconhece, não esquecerá nunca a delicadeza que aquele homem tivera para com ela. Nunca ninguém a tratara tão bem como esse Carlos que procuram.
Quando a policia se for ela vai sorrir.
Vai pensar que está feliz.
Que o que viu naquela noite lhe trouxe essa alegria.
Oxalá também eles encontrem um novo começo como o que sem saberem lhe deram a ela.
Nunca os denunciaria.
Vira tudo, detrás do longo balcão de vidro.
Tudo o que vira só lhe fazia querer-lhes bem.
Ela ainda não sabe mas é o que vai pensar quando vir o carro da polícia arrancar do parque de estacionamento.
O homem sentado no canto junto à janela acaba de se levantar.
Tem um novo brilho no olhar.
Tem nos olhos o brilho de uma nova força.
Caminha decidido.
Com as costas direitas e o queixo levantado.
Abre a porta, fica um breve momento a respirar o ar da noite e sai.
Para ele o novo começo é agora.
É hoje.
Que poder desconhecido tem aquele local??

Isabel

"The Way"
Fotografia de Sergio Redondo

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Abanar o mundo

Palavras que ligam pessoas. Pessoas que abanam o mundo
As palavras e a sua força não cessam de me surpreender.
Aqueles me lêem com frequência sabem desta minha paixão, desta minha entrega, desta minha dedicação, deste meu amor desmedido pelas palavras.
Sabem também que comecei a escrever aqui, neste espaço que aos poucos fui construindo, devido a um impulso, que no meu caso particular implicou uma verdadeira batalha contra a falta de tempo e contra a minha natureza inata que me diz para não me expor.
Ganhei essa batalha no dia que iniciei este blog.
Continuei graças a vocês, todos vocês, que neste espaço me visitam, me lêem e me comentam. Já vos agradeci aqui por isso e no meu intimo agradeço-vos todos os dias.
É a vossa presença e o vosso estímulo constante que fazem com que continue “a fazer das tripas coração” para arranjar tempo e por vezes coragem para escrever.
Tem sido cada vez mais difícil.
A falta de tempo é cada vez maior e por melhor que tente geri-lo o dia continua, contra minha vontade, desde já deixo aqui o meu protesto por isso, a ter só 24 horas.
Tenho também numa dura e por vezes muito violenta luta interior aumentado a dose de auto desafio tentando ir cada vez mais fundo dentro de mim.
Tem sido, confesso, muito difícil por vezesmas também surpreendentemente compensador.
Acredito na força da escrita. Acredito no seu poder. E só concebo escrever se me rasgar até às entranhas para o fazer.
Entendo a escrita como muito mais que um conjunto de palavras bonitas ou feias.
Não condeno quem escreve apenas em busca de beleza.
Não condeno quem escreve sem emoção, de forma fria e racional.
Não condeno quem escreve com base na invenção pura, sobre algo que não conhece, que nunca viveu, que nunca sentiu, que nunca viu.
Não condeno mas não é para mim.
Eu não sou assim.
Para mim a escrita é um processo doloroso, tem de começar por uma dor interna, provocada por mim, dentro de mim, servindo apenas o objectivo de dar de mim às palavras que escrevo.
Eu não uso as palavras para escrever sobre mim.
Eu uso-me a mim nas palavras com que escrevo.
Por amor à escrita.
Por amor às palavras.
Por amor rasgo-me, escarafuncho-me, esfrangalho-me cá dentro.
Depois, coberta de sangue, com as feridas abertas, com tudo a doer, sento-me e escrevo.
Só escrevo sobre o que conheço.
As minhas personagens são fictícias mas são reais.
As personagens não existem, mas existem aqueles sentimentos, aquelas sensações, aquelas vivências, aqueles mundos.
Existem e eu conheço-os.
Conheço-os bem.
Ou porque eu própria os vivi ou porque os vi e senti muito perto, tão perto que se tornaram parte integrante de mim.
Não escrevo nem escreverei nunca sobre nada que eu não trate por tu.
Não escrevo com espírito missionário.
Mas escrevo com espírito de entrega.
Essa entrega, como todas, tem tanto de belo como de doloroso.
Na verdade são pedaços de mim, das minhas memórias, do meu saber e do meu sentir que vou arrancar ao fundo de mim e esfrego nas pontas dos dedos para que o meu sangue e os nacos do meu ser, esguichem e tombem dos meus dedos para o teclado e do teclado para esta folha virtual que qualquer um pode ler.
Que vocês lêem.
Saibam que quando lêem estão a receber o que de mais valioso vos posso dar: Eu mesma.
Não vos pedi nada em troca.
Mas vocês deram.
E não param de dar.
Não param de me surpreender.
Não param de me ensinar.
Tenho sido, aqui neste espaço surpreendida por cruzamentos, estranhas ligações de personalidades, de crenças, de pensamentos, de ideologias, de formas de estar na vida e com a vida, tão diferentes e que no entanto, acabaram por produzir momentos de verdadeira partilha e aprendizagem mutua.
Num dos meus últimos excertos de “Começar de novo” a personagem Luísa regressa à vida ao fim de um coma de 5 dias.
A Elsa leu e tendo também já passado por um coma, sentiu-se particularmente tocada com esse texto. Impelida pela lembrança do que passou escreveu, no seu blog
eu-estou-aki.blogspot.com , um post a que chamou “Voltar para a vida…” em que fala de forma intimista e sentida sobre a sua experiência.
Isto só por si seria bonito, mas não seria extraordinário não fossemos eu e a Elsa as duas pessoas mais diferentes que se possa imaginar.
Se de todas as pessoas que me lêem me perguntassem qual é a que sinto como sendo mais diferente de mim eu diria: a Elsa.
Somos opostos. Somos duas pessoas que aparentemente nada tem a ver uma com a outra.
Somos duas pessoas cujas probabilidades de nos cruzarmos na vida seriam quase inexistentes.
Se nos cruzássemos provavelmente acharíamos de imediato que nada tínhamos para dizer uma à outra e seguiríamos o nosso caminho sem sequer trocar uma frase.
Quando parei pela primeira vez no espaço da Elsa, honestamente, o meu primeiro pensamento foi que nada tinha a ver com aquela linha de pensamento ou com aquele tipo de sentimentos.
Logo de seguida impus a mim mesma: Pois, Isabel, é precisamente por isso que vais ler! E vais ler com a máxima atenção.
E li. E cheguei à conclusão que vim de lá mais rica do que entrei.
É verdadeiramente fantástico, uma sensação maravilhosa quando temos a sorte de nos cruzarmos com pessoas com as quais nos identificamos, com pessoas com as quais sentimos uma empatia imediata, pessoas com as quais surgem de imediato inúmeras afinidades e pontos em comum.
Mas é também importante que nas nossas já tão ocupadas vidas, que dentro do nosso já pouco tempo, arranjemos ainda mais algum para aqueles que são diferentes de nós.
Aqueles com os quais, aparentemente, tudo indicaria que nenhuma semelhança temos.
Quem sabe até temos mais em comum do que as aparências nos indicam.
E se não tivermos quem sabe aprendemos com a diferença.
Eu voltei do meu passeio pelo espaço da Elsa continuando sem encontar muitas semelhanças entre nós, mas voltei muito mais rica porque aprendi com a diferença.
Escrevi sobre o regresso do coma da personagem Luísa, porque posso escrever sobre isso, porque estive em coma.
Como vos disse só escrevo sobre o que conheço e neste caso conheço porque estive lá.
Estive lá, deitada numa cama, hesitante entre a vida e a morte.
Não fui cuspida pela morte como a Luísa (a minha personagem) ou a Elsa.
Fui arrogante.
Achei que tinha o direito de estar mesmo prestes a trocar a vida pela morte e à ultima da hora mudar de ideias.
Não gostei da morte.
Não vi nenhum longo corredor.
Não vi nenhuma luz.
Não escutei a beleza do silêncio.
Não tive nenhuma sensação de paz.
Não gostei do sítio onde a morte vive.
A morte não me cuspiu.
A morte , não devia ter gostado de mim mas gostou, gostou e quis que eu lá ficasse.
Tentou puxar-me com força e fazer-me ficar com ela.
Mas eu tinha mesmo mudado de ideias.
E quando já parecia demasiado tarde, não foi.
Não permiti que fosse.
Lutei.
Bati-me.
Bati-lhe.
Insultei-me.
Insultei-a.
E depois de 3 dias de luta, venci.
Hoje cá estou para contar como foi.
A história que estou a escrever chama-se “Começar de novo” porque é algo em que eu sou especialista, tantas foram as vezes que comecei de novo ao longo desta minha ainda não muito longa vida.
Esta foi mais uma.
Uma, que prova que nunca é tarde para começar de novo.
Só é tarde para começar de novo na vida quando já se está irremediávelmente morto.
Acreditem, mesmo já dentro da malcheirosa boca da morte se pode mudar de ideias e começar de novo.
Eu comecei.
E estou aqui para continuar a viver até me apetecer ou até a morte, um dia, ser mais forte que eu.
Mas se eu não quiser a, já minha amiga, morte sabe que vai ter de se esforçar por me levar.
Sou das que luta até ao fim.
Teimosa, arrogante, persistente.
Sou forte.
Parte dessa força tem-me sido dada por todos vós.
Também sou cada vez mais humilde.
Parece contraditório mas se pensarem bem não o é.
Sou cada vez mais humilde e parte dessa humildade também foram vocês que me deram.
Foi com essa humildade, com essa força, com essa teimosia, com essa arrogância, com essa persistência que entrei no espaço da Elsa.
Sai de lá com mais de tudo isso.
Aprendi que devo tentar ser ainda mais humilde: a Elsa consegue sê-lo.
Vim mais forte: a força é algo que se pode trocar e juntar.
Eu e a Elsa trocamos e unimos as forças das nossas diferenças.
Juntas conseguimos alcançar e partilhar com quem nunca passou por essa experiência uma visão bem mais completa sobre o estado de coma do que cada uma de nós individualmente.
O que ambas vivemos de igual só tem mesmo nome científico em tudo o resto foi o oposto.
As conclusões ficam para vocês que assim tem o privilégio de ser confrontados com a visão dos opostos, ambos contados na primeira pessoa.
Vim mais teimosa, pois continuo teimosamente a defender as minhas opiniões, continuo teimosamente a achar que posso desafiar o mundo, a vida, a morte, tudo e todos.
Continuarei mais teimosamente ainda a remexer no que muitos preferem esconder pois estou teimosamente convicta que ao faze-lo estou a abanar um pouco o mundo este mundo onde cada vez mais reina a inércia. Abano-o devagarinho, eu sei. É um estremecer quase imperceptível, mas que importa! Mexeu, isso é o que importa.
Estou teimosamente convicta que o mundo precisa de ser abanado e enquanto estiver viva irei abana-lo sempre e tanto quanto puder.
Vim mais arrogante. A Elsa é uma pessoa com fortes convicções religiosas, o que se torna evidente ao ler qualquer um dos seus textos, eu sou precisamente o oposto, não tenho qualquer tipo de religião e confesso ser extremamente critica em relação às tomadas de posição das igrejas em relação inúmeros problemas da sociedade actual.
Arrogantemente tenho o meu próprio Deus. Arrogantemente tenho uma religião que eu criei e na qual apenas eu acredito. Uma religião sem regras nem cultos. Regras apenas as que imponho a mim própria e que, consciente de que sou um ser em constante evolução, me permito modificar sempre que a natural evolução do meu pensamento e da minha vontade assim o determinarem.
Uma religião sem orações, sem rezas, sem sacrifícios, sem penalizações, sem bem e mal.
Um Deus que sabe que lhe estou rezando cada dia que acordo viva.
Um Deus que sabe que lhe estou rezando cada vez que faço amor.
Um Deus que sabe que lhe estou rezando cada vez que choro.
Um Deus que sabe que o olho nos olhos, frente a frente, face a face. Um Deus que sabe que não me curvo nem me ajoelho. Mais facilmente me ajoelho para pecar que para rezar e o meu Deus sabe-o.
Rezo-lhe vivendo.
Um Deus que me conhece e me ama como sou. Que me ajuda a ser mais e melhor. Que me ampara a cada queda. Que me lambe cada ferida. Que me julga cada erro ensinando-me que os erros não se julgam.
Uma religião que não tem caixa de esmolas, nem velas que acendem por 1 euro, nem milagres pagos com joelhos em ferida.
Uma religião que não tem santos, nem santas, nem igrejas, nem basílicas, nem catedrais, nem capelas, nem capelinhas, nem pecados, nem pecadores.
Tenho esta arrogância de ter o meu próprio Deus e a minha própria religião e não peço perdão por isso.
Vim ainda mais persistente. Tornou-se ainda mais claro que vale a pena lutar. Que grandes batalhas se ganham pela persistência em não abandonar o combate.
A batalha pela vida é uma delas.
A batalha pelo entendimento e o respeito entre seres diferentes é outra.
Eu e a Elsa entendemo-nos e somos diferentes em tudo.
Eu tenho de continuar a lê-la, a ela, a todos os outros que pensam diferente de mim e a todos os que pensam semelhante a mim.
Só assim a minha visão do mundo poderá ser verdadeiramente abrangente.
Tenho de persistir na luta contra a falta de tempo.
Eu tenho de persistir escrevendo para ela que é tão diferente de mim e para os outros que são menos diferentes.
Temos sempre algo a acrescentar, algo a dar uns aos outros.
O que recebemos depende da abertura da nossa mente para receber.
Todos temos dificuldade em dar de nós, uns mais que outros, uns por umas razões outros por outras.
Em receber a diferença todos temos ainda mais dificuldade, ignorantemente a maioria das vezes essa é uma dificuldade da qual nem sequer nos apercebemos.
Há que abrir a mente para receber o que é diferente.
Entrar de mente aberta é sair com mente mais rica.
Com mentes ricas se move pouco a pouco o mundo.

E se não mover, moveu-se o nosso pequeno mundo.
E se não mover, moveu-se o nosso ser, crescendo.

Abrir a mente e ler.
Abrir a mente e escrever.
Abrir a mente e receber.
Abrir a mente e dar.
É o que fazemos por aqui.
Por isso todos estamos mais ricos.

E ia jurar que senti o mundo abanar um pouco.
Um pouco… muito pouco.
Mas eu senti.
Vocês sentiram?
Isabel
"Ligações"
Fotografia de Miguel Marques

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Começar de novo

Ana (excerto)
Estou sentada no fundo da cama, tenho as pernas entreabertas e o olhar cravado no chão.
Tento segurar a mente com os olhos, como se eles fossem fortes garras e a pudessem prender a este soalho de madeira e não a deixar ir.
Mas não podem.
Ela está a ir.
A ir para onde eu não quero que vá.
A maldita mente, está a afastar-se e para bem longe.
Anda louca, divagando.
Anda louca, confusa.
Louca!
Eu sei onde vai.
Vai a caminho do sítio proibido.
Louca, maldita!
O meu equilíbrio foi posto em causa.
Maldita mente!
Maldita Luísa!
Porque guardou, aquela idiota, o número de casa de minha mãe estes anos todos?
Idiota Luísa, sempre a mesma!
E a minha mãe porque deu o meu número assim sem sequer me perguntar?
Depois de ouvir que era do Hospital e o nome da sua querida Luizinha já não deve ter pensado em mais nada.
Durante muitos anos continuou a perguntar-me por ela.
Perguntou-me vezes sem conta o que se tinha passado entre nós.
Até um dia se ter tornado insuportável ouvir mais aquele nome.
Proibi-a de dizer o nome: Luísa.
- Nunca mais dizes esse nome ou falas nela, mãe, senão nunca mais falo eu contigo!
Foi esta a escolha que obriguei a minha mãe a fazer.
A minha mãe achava a Luizinha um encanto de rapariga.
Atinada, respeitadora, educada e muito, muito sensível.
- Um verdadeiro coração de ouro, aquela rapariga. Dizia a minha mãe.
Mas a filha dela era eu.
A desatinada, a que não respeitava nada nem ninguém, a malcriada e insensível. O coração de pedra.
Paciência.
Azar.
A filha era eu.
E obviamente, perante este facto inalterável, lá escolheu não falar mais na idiota da Luísa.
Ela não falou.
E eu não falei nem pensei mais nela.
Quando desapareci foi para a tirar da minha vida.
Definitivamente.
Matei-a dentro de mim.
E agora isto.
Mata-se ela e vira tudo ao contrário.
Agora que se suicida é que vem aparecer a menina Luizinha novamente na minha vida.
Porque fui ao Hospital?
Porque não a deixei pra lá a morrer sozinha?
Porquê?
Fui a correr.
Eu, o monstro, fui a correr.
Não pensei.
E voltei lá uma segunda vez, não sei que impulso me levou lá de novo.
A mim, o monstro!
Não gosto de impulsos.
Fui fraca.
Ela, a maldita Luísa, foi fraca com a vida.
E eu fui fraca também.
Ela fez-me fraquejar.
A mim, o monstro!
Vi-a.
Olhei para ela.
Tinha os olhos fechados mas eu ainda me lembrava como brilhavam.
Ainda me lembrava de cada olhar que aqueles olhos tinham.
Segurei-lhe a mão.
Ainda me lembrava de cada linha, cada gesto daquela mão.
Malditas memórias!
Não me preocupa o que lhe terá acontecido.
Não quero saber porque se matou.
Não quero saber se conseguiu sobreviver.
Espero, até, que esteja morta, merece por ter aparecido assim e perturbar este equilíbrio que tanto me custou a construir.
Empenhei-me.
Fui forte.
A mais forte.
Fui fria.
Gélida.
Virei costas a tudo sem olhar para trás.
E avancei.
Avancei.
Não parei de andar nem olhei para trás nunca.
Nunca!
Nunca me deixei pensar.
Nunca me deixei lembrar.
Nunca!
Até o telefone tocar.
Até aquela voz desconhecida me dizer que ela estava lá, no hospital, numa cama, sozinha, em coma.
Que ela tinha poucas probabilidades de sobreviver.
Que poucos eram os contactos que tinha na lista do seu telefone.
Que tinha um número que dizia: Ana (única amiga).
Porque não disse que era engano?
Nem estaria a mentir, era mesmo engano.
Eu já não era aquela Ana.
O número já não era meu.
Já não era aquela pessoa que ela ainda considerava amiga.
Única amiga. Eu o monstro!
Tonta!
Não tinha crescido?
Devia continuar como no dia em que lhe voltei as costas.
A mesma tonta a mesma idiota.
Mas eu não continuava a mesma.
Eu mudara.
O mundo já não me fazia mal.
Eu fazia mal ao mundo.
O mundo já não brincava comigo.
Eu brincava com o mundo.
E ela, criaturazinha ridícula, que me chamava de amiga tentara matar-se. Provavelmente porque tudo lhe continuava a tocar naquele coração de mel que tinha no meio do peito, naquele coração que outrora me enchera de mel a mim mas que hoje me mete nojo.
Nojo, Luísa, foi isso que te disse quando falei contigo e te dei a mão naquele sítio horroroso onde foste parar. Disse-te que me metias nojo. Fui lá duas vezes para te dizer isso. Metes-me nojo!
Nem sequer soubeste matar-te com estilo.
Que baixo nível Luísa.
Morrer ali num hospital público, num sítio feio, pobre, rodeada de gentinha medíocre.
Nem pensaste nisso, imagino.
Sempre a mesma.
O teu coração deve ter sucumbido.
Simplesmente deixaste que ele te indicasse o caminho.
Foda-se Luísa, nem para morrer usaste a cabeça em vez do coração.
Podias ter encenado uma morte com estilo.
Mas não!
Podias ter ao menos criado uma morte de que te orgulhasses.
Mas não!
Idiota.
Estou farta de idiotas como tu.
Odeio-te Luísa.
O idiota do meu marido incomoda-me mas odiar odeio-te a ti.
Ódio, sinto-o por ti.
Espero que não tenhas sobrevivido senão vou ter de te matar por teres aparecido de novo na minha vida.
Mato os dois.
A ti e a ele.
Aos dois coraçõezinhos de mel que gostam tanto de mim.
Hão-de morrer por isso.
Tem de morrer por isso.
Eu não quero ser amada.
Não quero que gostem de mim.
Sou infeliz.
Sou um monstro infeliz.
Não quero que me amem e me tentem ridiculamente fazer feliz.
A felicidade não existe.
É uma mentira inventada por uns quantos inteligentes para pôr um mundo de idiotas em sua busca.
Um mundo de idiotas a vida inteira distraídos com uma ilusão, cegos para a verdade, buscando atarefadamente algo que não existe.
Nem dignos de pena são.
Desprezíveis e nojentas baratas tontas.
Ratos estúpidos às voltas num labirinto sem saída, mil vezes passando pelos mesmos sítios sem perceber que a saída não existe, que estão presos para sempre.
Assim anda presa esta gentinha e não percebe.
Presa, destituída de qualquer liberdade, porque a sua busca incessante o seu objectivo final é algo que não existe.
A mentira das mentiras.
A prisão das prisões.
Aquela em que o prisioneiro entra voluntariamente e lá vive a vida inteira sem sequer se aperceber que está preso.
Felicidade!
Felicidade não existe seus cretinos!
Andam à caça de gambozinos, seus idiotas!
O idiota do meu marido acha que encontramos a felicidade juntos.
Hilariante!
A idiota da Luísa, provavelmente achou que nunca a iria encontrar e matou-se.
Não é para rir?
Matou-se por algo que não existe nem existirá nunca.
Estavam bem um para o outro.
Estavam mesmo.
Eram perfeitos um para o outro.
Jamais deixarei isso acontecer.
Se ela está viva, jamais deixarei que se encontrem.
Tenho de por tudo no lugar, imediatamente!
Tenho que conseguir pensar.
Tenho de parar de sentir.
Tenho de conseguir parar de recordar.
As memórias de momentos que se assemelham com essa tal de “felicidade” são perigosas.
Memórias de mim e da Luísa.
Memorias de mim e da Luísa conversando no café mais vazio que encontrássemos. Olhares fixos uma na outra. Atenção total. Entendimento total.
Entre nós apenas duas chávenas de chá fumegantes.
Memórias de mim e da Luísa sempre tomando conta uma da outra, protegendo-nos mutuamente do mundo exterior.
Memórias de mim e da Luísa criando a nossa linguagem. Uma linguagem só nossa que mais ninguém entendia. Que nos isolava. Que nos tornava únicas. Em mim foi crescendo um belo e maldoso mostro. Dela nasceu uma bela e dócil criatura de contos de fadas. Ambas irreais. Ambas estranhas criaturas que o mundo não entendia.
Memórias de mim e da Luísa engendrando as maiores aldrabices para podermos passar fim-de-semana juntas longe de tudo e de todos. Fugir. Ficar sós. Longe, o mais longe possível, era sempre o que mais ansiávamos.
Memórias de mim e da Luísa. As duas lado a lado em frente ao espelho.
Admirando como éramos diferentes. Elogiando as nossas diferenças. Dizendo que nos completávamos. Fazendo promessas de amizade eterna.
Memórias estúpidas.
Memórias que morreram naquele dia.
O dia em que desapareci.
Depois daquela noite.
Depois daquela noite.
Daquela noite tão maldita quanto tu, maldita Luísa.
Onde estão as outras Anas que não me tiram disto?
Onde está o monstro em mim?
Maldita Luísa!
Porque estou a sentir, de novo?
Maldita Luísa, porque voltaste?
Morre Luísa, morre!
Morre Luísa maldita!
Ou vive, abraça-me como antes e diz-me que tudo vai ficar bem!
Não!
Não vou ter saudades tuas!
Estás morta, espero.
Morre Luísa!
Já não sei viver contigo viva.
Matei-te naquela noite.
Naquela noite, lembras-te?
Eu não, eu esqueci.
Estás morta para mim Luísa.
Agora morre para a vida.
Por favor Luísa, morre, não me faças matar-te de novo.

(continua)

Isabel
"Monster in me"
Ricardo " Tattoodevil" da Costa