quinta-feira, março 22, 2007

Dias para relembrar

Chamavam-lhe LOUCO
Hoje.
Hoje, porque tinha de ser hoje.
Porque cada coisa tem o seu tempo.
Hoje, porque hoje não é cedo, nem é tarde.
É a hora certa.
O tempo certo.
Hoje é tempo de o lembrar.
Hoje é tempo de o escrever.
Hoje é tempo de dizer que ele existiu.
Hoje é tempo de dizer que ele não sendo ninguém de especial, foi especial para mim.
Ele dizia que não era nada
Que não tinha nada.
Que não sabia nada.
Dizia que era apenas um homem.
E era.
Apenas um Homem.
Um homem que existiu.
Que passou pela minha vida e ficou algures neste lugar entre a memória, o coração e a alma.
Que passou pelo mundo e partiu.
Ele esteve cá.
Pisou este chão.
Caminhou estes caminhos
O mundo não o viu mas ele viu o mundo.
Tive a sorte de ele me ver, de ele falar para mim e comigo e até de me escutar.
Os meus olhos ainda pequenos, mas já sedentos de ver, também o viram e tentaram ver tudo o que ele me tentou mostrar.
Os meus ouvidos tão pequenos, mas já tão esfomedos de saber, também o ouviram e tentaram escutar e aprender tudo o que ele tão baixinho e tão devagar me tentou ensinar.
O mundo não o viu nem o ouviu.
Talvez o mundo ainda o veja ou ouça um dia.
Através de mim ou de outro alguém como eu que teve a sorte de o ver e o ouvir.
O dia é hoje.
Hoje é o dia de começar a falar dele ao mundo.
E o mundo hoje começa aí.
Em vocês, aí desse lado.
Em vocês que me estão a ler.
Hoje vocês são o inicio do mundo.
Vocês aí, são o inicio de um pequeno mundo que o vai ver através de mim.
Não sei onde ele vivia.
Sei que vivia perto do sítio onde eu vivia.
Via-o muitas vezes.
Sempre sozinho.
Caminhava devagar, como se cada passo fosse a descoberta de um novo caminho.
Olhava devagar, como se cada olhar fosse uma nova forma de saborear o mundo.
Falava devagar, como se cada palavra fosse cuidadosamente escolhida para dizer o que realmente queria dizer.
Sorria devagar, como se fosse aos poucos abrindo o sorriso enquanto também aos poucos fechava a distância entre a alma e o coração.
Vestia sempre as mesmas calças, cinzentas, demasiado largas, presas na cintura com um cordel. Encontrara-as um dia, por ai algures e afirmava serem as mais confortáveis e macias que alguma vez vestira.
Não as trocava por nenhumas.
Por vezes lavava-as, não sei, nem imagino, onde.
Sei que as deixava secar naturalmente sobre o corpo.
Um dia vi-o com as calças molhadas e perguntei-lhe porquê.
Respondeu-me com uma naturalidade surpreendente: - Porque as lavei. Estavam sujas.
Perguntei-lhe porque não as deixara secar primeiro.
Respondeu simplesmente: - Porque queria vesti-las.
Tudo para ele era simples.
Vivia simplesmente.
Vivia em paz.
Plena paz interior. Plena paz com o mundo.
Era essa paz que fazia com que tudo nele fosse lento, não tinha pressa para nada.
Existia simplesmente e tudo na sua existência reflectia essa simplicidade tão dificil de ser um homem que simplesmente se limitava a existir.
Eu escutava-o sempre atentamente e eram muitas as vezes em que depois das suas curtas, simples mas sábias frases, eu nada dizia.
Que dizer perante tamanha simplicidade.
Que dizer perante tamanha sabedoria.
Restava-me apenas pensar.
Cabia-me apenas pensar.
E este apenas era muito.
Este apenas era apenas muito do que ele me deu.
Disse-me coisas que na altura apenas escutei.
Fiquei a pensar nelas naquela altura. Continuo a pensar nelas hoje.
Algumas aprendi, outras espero aprender um dia, outras talvez não as aprenda nunca.
Ele dizia que não era nada.
Mas esse nada que ele era, era um único e grande nada .
Ele dizia que não tinha nada.
Mas esse nada que ele não tinha, é o nada mais dificil de se alcançar.
Uma manhã ia a caminho do liceu e encontrei-o cheio de palhas na roupa e nos seus cabelos muito compridos.
Perguntei-lhe se tinha dormido num palheiro.
Disse-me que não que tinha dormido na casota de um cão.
Eu repeti o que me disse espantada: - Na casota de um cão?
Com a sua habitual simplicidade ele respondeu-me: - Estava frio. Acho que ele não se importou. Dividiu a casa dele comigo e dividimos o nosso calor um com outro.
Fez-me sentido.
Era tão simples e fazia tanto sentido.
Não respondi nada. Fui para o liceu a pensar na simplicidade daquele raciocínio.
Fazia sentido e era simples. Demasiado simples para mim, naquela altura. Tão simples que se tornava complicado.
Voltei a encontrá-lo mais tarde nesse mesmo dia.
As previsões eram de frio também para essa noite.
Perguntei-lhe se ia de novo dormir na casota do cão.
Disse-me que não sabia ainda.
- Talvez se voltar a ter muito frio e o cão não se importar.
Dessa vez não me contive e fui mais longe nas minhas perguntas:
- E tu não te importas de dormir numa casota de cão?
- O cão não te incomoda?
Sorriu- me como se sorri a uma criança que nos faz uma pergunta tola.
Manteve o sorriso no rosto e falou com a sua voz baixa e serena.
- Todos, homens e animais temos frio mas o homem como não têm pêlo tem mais frio que a maioria dos animais, como o cão por exemplo.
As pessoas não parecem reparar isso.
Agasalham os cães com camisolas e cobertores de pessoa, arranjam-lhes belas casotas com portas janelas e tudo, no entanto são poucas as que dão guarida a um homem com frio.
É estranho mas é assim.
O cão, no entanto, sabe que eu tenho mais frio que ele.
O cão sabe que o meu corpo produz calor e o dele também por isso se estivermos juntos ambos passamos menos frio.
Se ele não se importa de dividir comigo a sua casa porque me havia eu de importar?
Agradeço-lhe a guarida e o calor do seu corpo e do seu pêlo.
A diferença entre a casa de um cão e a de um homem é apenas a dimensão.
O homem tem casas muito maiores que o seu tamanho. Usa a casa para guardar todas as inutilidades de que está convencido necessitar.
O cão tem casa para se abrigar por isso a sua casa é ajustada ao seu tamanho. Excepto, claro, quando o dono do cão lhe faz uma casa como se o cão não fosse cão.
Nesse caso a casa do cão é da dimensão da ignorância do seu dono.
Dessa vez fui eu que ri.
Ri-me do que ele disse mas principalmente ri-me de mim própria. Eu vivia numa dessas casas com dois andares cheias de inutilidades. Não o podia levar para casa para o abrigar da noite fria. Não é próprio levar estranhos para casa mesmo que seja simplesmente para os proteger do frio.
Não é mas não deveria ser?
Simplesmente porque acontece que uns temos casa e outros não.
Frio todos temos não é?
Não seria natural que os que têm casa, nas noites de frio, dessem abrigo aos que não têm?
Natural talvez.
Mas não seria nada próprio. E seria certamente muito arriscado.
Logo, quem tem frio, paciência!
Tivesse trabalhado o mínimo para ter uma casita, modesta que fosse, ora essa!
Os mais humanos de nós levam para casa os animais abandonados.
Louvável sem dúvida.
Já levar para casa pessoas com frio, algumas abandonadas também, não , isso é impensável! Não seria nada próprio! E seria certamente muito arriscado.
Ri de mim mesma e de todos nós.
Sorri para ele enquanto lá dentro toda eu chorava, não por ele, por mim, por todos nós.
Ele era livre.
Eu era uma dessas pessoas com uma grande casa, um cão com casota, com mantinha de lã para o frio, com uma bonita coleira e uma forte trela.
Prisioneira eu.
Prisioneiro o cão.
Prisioneiros todos nós que nos aprisionamos nas nossas próprias convenções.
Não fui criadora dessa convenção mas deixei-me aprisionar por ela no momento em que entrei na casa de dois andares e me senti confortável, no dia em que comprei o cão e tive a ousadia de achar que era sua dona.
- Anda à dona/o! Dizemos nós autoritáriamente amorosos.
Ridiculos é o que somos! Queremos ser donos de tudo.
Donos da casa, do carro, do gato, do cão e até uns dos outros.
Chorei com pena de mim. Com pena de todos nós.
A mim todos me achavam “relativamente” normal.
A ele, mesmo sem o verem, todos o achavam completamente louco.
Louco é a palavra mais utilizada pelos homens para definir aquilo que não conhecem.
É louco.
Enlouqueceu.
Vive num estado de estranha loucura.
E pronto, com a palavra "loucura" se explica o que não se sabe explicar.
Ele sabia que lhe chamavam louco e era-lhe totalmente indiferente.
- Talvez até seja. Esse é um diagnóstico que não sei fazer. Dizia-me encolhendo os ombros.
Por vezes cruzávamo-nos na rua cada um com os seus pensamentos e apenas sorriamos.
Outras ficávamos a falar horas, não importava onde.
Num café.
Num banco de jardim.
Na paragem do autocarro.
Na escada de um prédio.
Sentados num muro.
Não importava onde, importava sim que quando nos apetecia falar o fazíamos porque tínhamos coisas para dizer, para perguntar, para responder, para dar, para trocar, para ensinar, para aprender.
Nunca esquecerei um certo anoitecer, em que me cruzei com ele vinda das aulas.
Estava a chover. Não era uma chuva torrencial. Era aquela chuva miudinha que faz o ar parecer carregado de pequenas partículas de cristal, húmidas e brilhantes caindo lentamente.
Nessa altura eu usava muito xailes.
Eram um dos meus acessórios preferidos.
Não estavam na moda.
Usava-os porque os achava esteticamente bonitos.
Usava-os também, é-me agora evidente, como forma de afirmar a minha diferença, a minha personalidade e até a minha, alguma, originalidade.
Gostava de longos xailes de lã, feitos à mão, com malha larga e bastante trabalhada.
Nesse dia trazia um xaile preto. Quando a chuva começou a cair, instintivamente, cobri a cabeça com ele.
O “louco” passou por mim em passo lento e foi um daqueles dias em que apenas trocamos um sorriso.
Soube depois pela minha mãe que ele já me observava enquanto caminhava para mim e que tinha continuado a observar-me até eu lhe fugir dos olhos, desaparecendo do seu horizonte.
Contou-me a minha mãe que ele lhe tinha dito que me tinha visto naquele anoitecer chuvoso envolta numa aura de mil cores.
Que tinha visto dessa aura emanar um brilho imenso.
Que as cores e o brilho da minha aura misturadas com as gotas da chuva eram das mais belas visões que já tivera.
A minha mãe perguntou-lhe porque não me dissera isso a mim, na altura.
Ele respondeu-lhe que na altura nada havia para dizer.
Apenas contemplar.
Diziam que ele era louco.
Se ele era louco que somos todos nós?
Esse louco já morreu.
Foi de viagem.
Foi conhecer outros mundos.
Tenho saudades das minhas conversas com ele.
Tenho saudades do seu olhar, do seu sorriso e da sua voz cheias de paz.
Tenho saudades de me sentir com a aura que ele via em mim.
Hoje é tempo de falar nele.
Hoje é tempo de o escrever.
Hoje é tempo de o mundo o ler.
Hoje o mundo começa aqui.
Hoje pensei nele mais que qualquer outro dia.
Gostaria de lhe perguntar como é agora a minha aura.
Será que ainda tem mil cores?
Será que ainda tem um brilho imenso?
Mil cores tinha a aura dele e eu nunca lho disse.
Vejo-a no céu tantas vezes, a dele e de muitos outros “loucos” como ele.
São auras, as mil cores de que o céu se pinta.

Isabel

"O nosso olhar"
Fotografia de Isabel
Este texto é dedicado à minha "tanta coisa" Bettips

sexta-feira, março 09, 2007

Começar de novo

Ontem foi dia da mulher, rebelde mas com causa como sou, decidi simbolicamente dar hoje início a um texto cuja personagem é um homem.
Se somos realmente iguais então também o homem deveria ter o seu dia.
Isso assemelhar-se-ia um pouco mais à verdadeira igualdade.

Faço-o hoje também porque este texto está acompanhado de uma foto que eu tirei para postar num blog interessantíssimo,
http://outrostemas.blogspot.com/, que vivamente aconselho visitar. Cada semana é dada uma palavra, que servirá de tema a uma fotografia, a fotografia será a interpretação do autor daquele tema e não pode ser legendada nem acompanhada de texto.
Na minha mente esta fotografia tem uma história. A história do primeiro entardecer de Carlos, depois da sua fuga, depois de se ter tornado um assassino, depois do seu começar de novo.
É assim também o meu entardecer muitas vezes, por isso aquela é a minha mão, aquele é o meu maço de cigarros, aquela a minha chávena de chá, aquele é um livro de poemas que não são meus – são de Joaquim Pessoa.

Entardecer (excerto)

Era um entardecer
Igual a todos os outros, todos igualmente diferentes, todos diferentemente iguais.
Não existe um entardecer igual a outro.
Era apenas um entardecer.
Um daqueles pedaços do tempo, das horas, dos dias, de todos os dias.
Um pedaço de tempo que tanto é princípio como é fim.
Que tanto aproxima como separa.
Que tanto une como isola.
Que tanto esconde como revela.
Há já um projecto de noite emoldurado na descolorada tela do fim do dia.
Há o sol e uma lua apaixonados.
Um sol e uma lua apaixonadamente caminhando um para o outro.
Mãos entreabertas, olhos semi cerrados, corações ansiando o breve encontro.
Há um encanto que os deixa aproximar e um encanto que o encanto do tempo imparável e intemporal obriga de novo a afastar.
Há um dia e uma noite que se separam.
Sol e lua ou noite e dia amantes que o tempo não deixa parar, amantes de um amor infinito que infinitamente ficarão sem se amar.
Era apenas um entardecer.
Apenas um fim de dia que une quem tem a quem se unir.
Os pais unem-se aos filhos.
Os homens unem-se às mulheres.
As mulheres unem-se aos homens.
Homens unem-se aos homens.
Mulheres unem-se às mulheres.
Os lábios unem-se ao beijo.
Os braços unem-se ao abraço.
As bocas unem-se à voz.
As famílias unem-se à mesa.
A mesa une-se ao alimento.
O sofá une-se ao televisor.
Os corpos unem-se aos corpos.
O desejo une-se ao prazer.
O cansaço une-se ao descanso.
E nesse mesmo fim de dia de união há quem se una simplesmente à solidão.
Era apenas mais um entardecer.
Apenas mais um entardecer para o mundo.
Para Carlos era um entardecer único.
Era o primeiro entardecer sem a SUA HORA como lhe costumava chamar.
Carlos tinha um ritual de entardecer há muitos anos.
Um cigarro, um chá quente e poesia.
Entardecer era um cigarro entre os dedos.
Entardecer era um chá quente e fumegante
Entardecer era um poema.
Entardecer era por um momento parar o tempo para apenas ser.
Na sua hora gostava de apenas ser o que enchia de prazer o seu ser:
Um cigarro, um chá quente e poesia.
O cigarro que mata, o chá que aconchega a morte e a poesia que faz o morto renascer.

(continua)
Isabel

Fotografia Isabel