quarta-feira, outubro 11, 2006

O valor de um sonho

A mulher que vendia sonhos

Ali estava ela, no passeio rodeada de gente que nem a via, sozinha, ela, o seu ar triste, e um molho de livros nas mãos.
Já a estava a ver ainda antes de atravessar a rua.
Era tão nova.
Tinha um ar tão desamparado e triste.
Aproximei-me dela e ela de mim.
Era bonita.
Sorria tristemente disfarçando o desespero.
Abraçava os livros com carinho e força como se abraça alguém que não se quer ver partir.
Olhou-me.
Nos seus olhos passava o filme de todo o drama de uma vida.
Uma vida que tinha chegado ali.
Sorri-lhe.
Acho que também era triste o meu sorriso.
Disse: “Um livro por um euro minha senhora.”
O meu sorriso ficou mais triste ainda.
Achei que não tinha dinheiro. Tinha os pés pregados no chão sem me conseguir afastar.
Tinha os lábios colados sem conseguir dizer nada.
Limitei-me a sorrir. Triste.
Ela falou por mim.
“ Não tem de ser um euro, pode ser menos, sabe eu tive vergonha de pedir esmola, achei que era melhor em troca do dinheiro dar uma coisa que eu gostasse muito, achei melhor assim, entende?”
Eu entendi.

Claro que entendi.
Eu faria o que ela fez.
Com a mesma dor com que ela o fazia.
Podia ser eu a estar ali.
Olhei para os livros enquanto metia a mão na carteira.
Eram romances. Desses romances de cordel cheios de fantasia e romantismo.
“A senhora se calhar não gosta deste tipo de leitura não é?”
Eu tinha encontrado a moeda.
Disse-lhe: “Não importa, os livros são seus, fique com eles.”
Pus-lhe a moeda entre os dedos e fechei-os sentindo-me envergonhada por lhe estar a dar uma esmola e não a leva-la dali.
Ela agarrou-me a mão e por um segundo os nossos olhos cruzaram-se.
Disse-me obrigada, com o olhar.
Eu pedi-lhe desculpa também com o olhar.
Ela agradeceu-me a moeda, mas principalmente que não lhe tivesse levado os livros. Cada livro era um sonho.
Naquele dia estava ali no meio da rua vendendo os seus sonhos por 1 euro.
Agradeceu-me que eu tivesse entendido.
Tinha perdido quase tudo por isso ali estava.
Era mais uma etapa. A etapa da venda até dos sonhos.
Um euro. 1 sonho.
E havia quem lhos levasse.

Havia quem lhe desse um euro pelos seus livros.
Havia quem desse 1 euro por 1 dos seus sonhos.
Distração, mediocridade, crueldade.
Não sei!
Fiquei com aquele calor das suas mãos colado nas minhas mãos.
Sei que ela ficou com o meu calor.
Afastei-me a correr.
Não quis que ela visse o esboço de lágrima no meu olhar.
Corri para o carro.
Onde me esperava a alegria.
Saltitei, fiz palhaçadas caminhando para o amor que me esperava.
Tentava disfarçar, o coração pequenino. Tentava evitar a lágrima teimosa.
Tentava evitar a raiva e a vergonha.
Porque não tem ela alguém à espera.
Porque vou eu embora de carro, para casa, acompanhada de alguém que amo e me ama, e ela fica ali, no passeio, sozinha, triste, vendendo os sonhos.

Ela e eu eramos a imagem da injustica e desigualdade no mundo.
Dela ficarei sempre com a memória.
Lembrarei para sempre aqueles olhos tristes.
O carinho desesperado com que agarrava os livros.
E o calor.
O calor das suas mãos.
O seu nome?
Não sei.
Lembra-la-ei como a mulher que vendia sonhos.




Isabel

"Mulher com livro"
Pablo Picasso

17 Comments:

Blogger Unknown said...

...é preciso sonhar cada vez mais!
Bj

quarta-feira, outubro 11, 2006  
Blogger Pierrot said...

Isabel...
Ufa...
Tenho de confessar que senti um aperto, um nó na garganta e tenho os olhos embaciados... não me envergonho de o admitir, eu, um homem.
Que história mais linda e no entanto, tão triste.
Confesso também que sou muito susceptível a este tipo de situações e fico contrangido com estas misérias humanas.
Também tenho algumas histórias, algumas delas decorrentes da minha profissão, que me destroçam cada vez que me vêem à memória e que tento esquecer, por vezes de uma forma egoísta até.
Tiveste uma atitude nobre, muito nobre mesmo mas não consigo deixar de ficar triste com a senhora.
Sorry :-(
Bjos daqui
Eugénio

quarta-feira, outubro 11, 2006  
Blogger veritas said...

Olá Isabel!

A vida está cheia de vendedores de tudo. Ainda agora deparei na rua com mulheres que vendem o corpo, que povoam uma rua por onde passo todos os dias, entristece-me ver que há uma adolescente num posto novo, uma jovem anónima, mas que me deixou a pensar, porque só um forte ou dramático motivo a pode ter impulsionado a estar ali,ao sabor da brutalidade, vi que usava um boné para ajudar a cobrir a cara. Também há as vendedoras de flores, essas mais frescas e joviais, porque a dignidade permanece intacta. Pode-se ser vendedor de tudo, desde que persista a dignidade e honra, porque essa não se vende, nem se compra...!!

Bjs.

quarta-feira, outubro 11, 2006  
Blogger Misantrofiado said...

Boa noite cara Isabel.
Em primeiro lugar quero agradecer a ousadia por ti manifestada na visita prestada à realidade mais decadente que consigo - o meu blog.
Em segundo lugar e, sendo eu persona fria, confesso porém que em nada indiferente me mostrei ao texto lido. Neste mesmo texto, escreveste "Distração, mediocridade, crueldade..." e afirmas que não sabes. Eu também não sei mas acredito na "distração".
O texto que dedilhaste debaixo de uma atmosfera facilmente reconhecível, já nos aconteceu a todos.. de contrastes mais ou menos semelhantes.
O teu texto emociona duplamente e se tiver de explicar a razão, pois bem... voltarei disponível.
Bem hajas Isabel.

quarta-feira, outubro 11, 2006  
Blogger as velas ardem ate ao fim said...

Tu escreves tão bem que se a inveja não fosse um sentimento tão feio atrevia me a dizer tal barbaridade. Mas sou nobre de sentimentos, e já fico contente por me deixares ler o que escreves.

Obrigada,

quarta-feira, outubro 11, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Estou sem palavras...
Acredito, que um dia, de uma qualquer forma, as pessoas são recompensadas por todos os sofrimentos a que são sujeitas... Será apenas um sonho? Não sei..., vou continuar a acreditar...!

Beijito.

quinta-feira, outubro 12, 2006  
Blogger £ou¢o Ðe £Î§ßoa said...

Lindo, de uma tremenda sensibilidade, adorei, gostei muito.
Lembraste que muitas vezes, vezes demais olhamos para a pessoa e não para o que ela é e sente.

Kiss, até outro instante.

quinta-feira, outubro 12, 2006  
Blogger José Manuel Dias said...

..o sonho comanda a vida...

quinta-feira, outubro 12, 2006  
Blogger Cris said...

Menina, até me apertou o coração, e senti o desespero chegar-me ao coração. Vender o ultimo reduto da nossa alma, os nossos sonhos, deve ser a perda absoluta de humanidade e o que a Senhora dos Sonhos teve que ser obrigada a fazer, é destino que não desejo a ninguém. Afortunados somos aqueles que nos podemos queixar que sonhamos demais.

1 beijo e obrigado pela visita, és sempre bem vinda

Cris

quinta-feira, outubro 12, 2006  
Blogger Sendyourlove said...

...e o aperto da impotencia de não poder pegar em todos os que pedem, e realmente precisam, e os levar para casa...
Chorei...e está muito bem escrito.
Obrigada pela visita.

quinta-feira, outubro 12, 2006  
Blogger Maria Carvalho said...

Uma história comovente, real, bem contada! Obrigada pelas tuas palavras nas romãs.

quinta-feira, outubro 12, 2006  
Blogger Vanda said...

:) eu comprei-lhos todos ontem...meti-os na algibeira da mochila e fui logo cedo para Lisboa...percorri lentamente o rio...pouca terra pouca terra...e caí no vapor de um ferro, que alisa lençóis mas não apaga dores...ouvi e chorei por dentro, sorrindo por fora...perdoar e dizer não tiveste culpa, deixa-la morrer solteira, essa eterna companheira de amores mal vividos: a culpa. Arrumar memorias e deitar pela janela o fumo da fogueira. Depois subir as ruas da minha infancia, comprar ursinhos de madeira e zarpar para casa de uma amiga :) onde se celebrava a chegada da filhota operada a uma peritonite com dois anos e meio, apenas. Rir, desabafar, cantar com a miuda, ve-la sorrir, sorrir tambem...abraca-la num arco iris de olhos :)

-QUando cheguei a casa, caí no sofa e descansei uma hora...depois, carrefour, mantimentos, bolas de berlim na cama comigo e caí de novo.Morta.

Felizmente o açucar trouxe-me de volta à vida, a tempo de abraçar o meu gajo que se deitava e de por fim, me sentir amada :))


Vai-me perdoando as ausencias :)

De vez em quando não sou dona de mim nem do meu tempo :) nem das minhas emoções :)

Mas, quando volto e voltarei sempre a ti, venho completa e reciclada, mesmo correndo o risco de empaturrada em açucar :))


Gostei muito dessa tua mulher. escreveste com o coração e é assim que eu gosto.

Beijo


Van

quinta-feira, outubro 12, 2006  
Blogger ricardo said...

...bonito!...

quinta-feira, outubro 12, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Como é que consegues relacionar tão bem o poema com o quadro? Esta perfeito a simbiose. Parabens

quinta-feira, outubro 12, 2006  
Blogger TG said...

tudo o que escrever nunca roçara a sensação que agora tive ao ler as tuas palavras. não é passivel de ser comentando. basta ler e reler e reler...

muito bom mesmo
bjs
Tiago

quinta-feira, outubro 12, 2006  
Blogger Maçã de Junho said...

Cara Isabel:
Ando á volta do conteudo desde comentário à cerca de 20 minutos, sei o quero dizer mas não consigo, talvez um dia, o diga, só a ti!

No entanto a tua escrita coloca-nos frente a frente a essa Senhora, olhos nos olhos, mão na mão.
Está muito bom.

PS: O comentário poderá sempre ser acompanhado por uam fatia de tarde de Maçã com uma pitda de canela! Tentador não!
Maçã de Junho

quinta-feira, outubro 12, 2006  
Blogger Unknown said...

oi isabel parabens pelo texto que fez me refletir com a ajuda dos comentaristas fenomenais.uns falam que n souberam entender direito na parte que fala de distração crueldade,eu acho que é um pouco de td na vida dela ela vendendo oque mais gostava teve um homem ou uma mulher nos comentarios de dignidade ela tinha n deixou de ser boua por mais que fosse escluida da sociedade como vemos ainda no nosso brasil sabe teve uma pessoua q falou de um caso de prostituição e fez ela refletir e tb me fez refletir que era uma adolescente que vendia o corpo por alguma razão mais independente do que ela for ela nunca perde a dignidade.a bondade independente de td obrigado a tds pelos comentarios n li de tds mais vlw..

domingo, dezembro 13, 2009  

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