quinta-feira, junho 21, 2007

Blogs com coragem

Estas minhas folhas de papel virtual, onde eu vou escrevendo o que me dá na gana, têm um nome: blog.
Este meu blog foi nomeado como um blog “com tomates.”
Fui nomeada pelo Croqui, autor do blog "esquisso-a4" , http://esquisso-a4.blogspot.com/,um excelente blog, na minha “modesta” opinião, com a Arte, em todas as suas vertentes, como tema de fundo. Passem por lá que vale a pena.
Ter sido nomeada pelo Croqui recheou de valor e sentido esta nomeação que de outra forma seria oca de ambas as coisas.
Parece que a ideia é a de premiar os blogs considerados com tomates.
Segundo as palavras da autora da iniciativa (a Brit Com) um blog com tomates “… é aquele que luta pelos direitos fundamentais do ser humano. Havendo quem possa ter outra interpretação do mesmo, a nomeação de blogs e seus respectivos conteúdos são da responsabilidade de quem os indica.”
Que fique bem claro que nada do que irei escrever em seguida pretende ser um ataque à pessoa da Brit Com ou ao seu blog. Já estive lá, pelos seus vários blogs, a bisbilhotar e cabe-me dizer que a autora me parece ser uma pessoa enérgica e cheia de poder de iniciativa, o que neste país e nesta época em que a maioria parece cruzar os braços e lentamente deixar-se arrastar pela corrente, como que contagiada por este surto de inércia aguda que infelizmente nos assolou, alguém com iniciativa e força para remar contra ou a favor da corrente é sempre bem vinda.
Mas…
Há sempre um mas.
Como eu própria também ainda tenho energia que sobra e a inércia parece não me ter atingido, pelo menos nem no cérebro, nem nas pontas dos dedos e estas são as duas coisas essenciais para escrever, irei, como sempre fiz, escrever o que penso.
O coração também é importante no processo da escrita apesar de não ser absolutamente essencial. O meu, no entanto, aqui está, bem acordado, batendo dentro do meu peito forte como um touro. Usá-lo-ei para escrever o que sinto, como também, aqui, sempre tentei fazer.
Comecemos então pelo nome escolhido para esta nomeação:
para quem tem amor às palavras, este nome peca no mínimo por algum mau gosto.
A expressão é, lamentavelmente, popularucha em excesso.
Não que a palavra “tomates” tenha algo de mal, de chocante ou muito menos de proibido. Eu até adoro o tomate legume, cru e cozinhado de todas as maneiras que assim de repente me consigo lembrar.
Em linguagem popular a palavra “tomates” é usada como uma espécie de meia asneira.
A palavra correcta seria testículos, significando os componentes do aparelho reprodutor masculino e do sistema endócrino masculino que têm como função produzir espermatozóides e testosterona. Nos mamíferos existem aos pares e são protegidos fora do corpo por uma bolsa chamada escroto.
Existe depois a palavra já considerada como uma asneira inteira “ c…”, todos sabemos qual é, pelo que não me parece necessário transcrevê-la aqui.
Juro que se não o faço não é por falta "deles"!
“Tomates” é então a escolha intermédia, a escolha do meio, a que permitiria, supostamente, estar bem com Gregos e Troianos, ou seja, é uma forma de não parecer nem rebuscado, nem ordinário, ficar-se pelo assim-assim.
Vejamos então, afinal o que quer dizer “ter tomates”?
Quer dizer precisamente ter coragem.
Então porque não dizer ter coragem?
Porquê?
Porque não nomear um blog como um blog de coragem, ou corajoso?
Deixaríamos de ter uma expressão popularucha.
Deixaríamos de ter uma palavra que é um elogio ao meio-termo, neste caso, à meia asneira.
Eu não sou, confesso, fã de meios em coisa nenhuma.Não concordo que no meio esteja a virtude e neste caso especifico nunca um meio me pareceu menos apropriado.
Como podemos usar um meio-termo para fazer um elogio à coragem?
Ser corajoso é não ser de meios-termos, é ir, avançar, continuar, ousar, dar a cara, enfrentar, desafiar. Ser corajoso, nunca, nunca é ficar pelo meio de nada, nem de coisa nenhuma.
Mas há mais, considera-se que o simples facto de se ter os “ditos” é já um sinal de coragem. Se ainda por cima eles forem de grandes dimensões (suponho que comparados com um tamanho considerado médio ou normal) e estiverem bem colocados, bem “no sítio”, então ainda maior é a coragem do seu proprietário. Um verdadeiro vulcão guardado entre as pernas, pronto para uma erupção de coragem a qualquer momento.
Como todos nós sabemos só os homens os têm. Grandes ou pequenos, no sítio ou fora dele, a verdade, a verdadinha é que nós, mulheres, não os temos, e ainda bem!
Assim sendo, parece-me que a dita expressão além de “pecar” por ser mediana, “peca” ainda por ser machista.
Nós mulheres, para podermos ter coragem, ou ser corajosas, teremos, então, de nos munir de um belo par dos tais “tomates”, pois parece que com as nossas características genéticas naturais não chegamos lá.
Resumindo e, neste caso, baralhando mesmo, segundo o povo e a sua sabedoria, assim como “atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher”, também entre as pernas de uma grande mulher deverá, certamente, haver um grande par de “tomates”.
Ora como para cada homem, diz também o povo sábio, há sete mulheres, por detrás de cada grande homem há sete grandes mulheres, cada uma com 1 grande par dos "ditos". Feitas as contas, para fazer um grande homem são necessários 8 pares de grandes tomates, os dele e mais os 7 das mulheres que cada homem tem.
Isto presumindo que os grandes homens são, neste aspecto, iguais aos outros e não têm mais do que 7 mulheres.
Percebe-se assim porque há tão poucos grandes homens. É que as mulheres andam por aí desesperadas a roubar-lhes os “tomates” para poderem ajudar o “seu macho”, partilhado por mais seis mulheres, a ser um grande homem.
Estão a ver o alcance disto?
Onde chegaríamos se continuássemos com esta mediocridade de raciocínio?
Até aqui só falamos do quanto a expressão é mediana e machista.
Mas ainda há mais.
Deixemos a expressão e centremo-nos na palavra propriamente dita.
Tomates.
Há aqui também uma enorme falta de gosto.
Claro, dir-me-ão vocês que o gosto é uma questão muito relativa.
É-o com toda a certeza, e mais uma vez, ainda bem.
Mas para o meu gosto, a escolha da palavra não é de bom gosto. Pelo contrário é de muito mau gosto. Quer na estética quer na musicalidade.
As palavras além de terem um significado, têm também uma estética e uma musicalidade própria.
Parece-me obvio que o significado de ter tomates aqui, será o de ter coragem, até porque honestamente não lhe conheço outro se não o do próprio do legume em si. Definitivamente o tomate (legume), não se cultiva, não se colhe, não se vende, não se compra, não se oferece, não se recebe , não se come nem cru nem cozinhado aqui no meu blog.
Legume por legume, porque não a beringela, ou a endívia por exemplo?
Ambas, palavras com uma estética e uma musicalidade de muito melhor gosto, ”na minha modesta opinião”, que fique claro.
E porque não, repito, dizer “coragem”, simplesmente.
Ou será que é banal ousar coragem para dizer coragem?
Será pelo contrário muito ousado?
Coragem não é uma palavra popularucha, não é um meio-termo, tem um significado indiscutivelmente conhecido por todos e o seu valor é indiscutivelmente aceite pela maioria o que a torna uma palavra muito democrática, não é nem machista nem feminista, é bonita quer na estética quer no sentido e até soa bem no ouvido.
Comparemos: CORAGEM VS TOMATES
Qual vos parece mais bela?
Qual vos parece ter mais características positivas?
Na minha opinião, CORAGEM.
Mas claro, é apenas a minha, muitíssimo modesta, opinião.
Posto isto, declaro que os meus nomeados, sê-lo-ão na qualidade de “Blogs com coragem”
Peço desculpa a quem discordar mas é um direito que dou a mim própria.
Estou, digamos que cheia de “tomates” a lutar pelo meu direito fundamental de não gostar da palavra “tomates” e de a substituir por outra: coragem.
E assim, chegamos ao conceito de blog com coragem ou “com tomates”: segundo a autora desta belíssima iniciativa, um blog para ser “isso” tem de lutar pelos direitos fundamentais do ser humano, deixando no entanto em aberto que pode haver quem tenha outra interpretação.
Ainda bem que esta ressalva existe pois na minha ,cada vez mais modesta, opinião, existem inúmeras formas de ser, ter, transmitir, dar, oferecer, partilhar coragem que não através da luta pelos direitos fundamentais do ser humano, não desmerecendo, é claro, esta luta.
Se existissem direitos fundamentais pelos quais eu fizesse questão de lutar no meu blog, estes seriam o direito à liberdade de expressão e o direito à diferença, no entanto não sinto que lute por eles aqui, dou-lhes, talvez, alguma expressão ao exercer eu própria esses direitos e ao estimular quem me visita a fazê-lo também.
Na verdade a luta que aqui travo pela liberdade de expressão é comigo, ao exigir de mim mesma, escrever, aquilo que realmente penso e sinto e não me contentar com menos.
Aceito escrever algo mau, ou pouco bom, no aspecto literário, mas não aceito escrever algo que não seja expressão da minha liberdade.
“As liberdades não se concedem, conquistam-se.” disse Kropotkine, é isso que eu aqui faço ao escrever, vou conquistando a minha liberdade de me expressar através da escrita.
Exerço essa liberdade à minha maneira, explorando e alimentando todas as minhas diferenças, caminhando por essa estrada acidentada e solitária que sou eu mesma. Caminho entre luz e sombras, entre girassóis e ervas daninhas, entre dias solarengos e tempestuosos, entre campos abertos e labirintos.
Caminho correndo a voar ou arrastando cansaços, mas vou caminhando sempre, e sempre pela estrada menos caminhada.
Robert Frost escreveu:
Two roads diverged in a wood, and I
I took the one less travelled by,
And that has made all the difference
Acontece comigo e julgo acontecer com todos nós, vezes sem conta, ao longo das nossas caminhadas, encontrar dois caminhos divergentes à nossa frente, e pensar:
Que caminho devo escolher?
Eu escolhi sempre o caminho mais solitário, escolhi sempre o mais difícil, escolhi sempre o que me pareceu mais novo, mais virgem, com mais para explorar, e isso, isso fez toda a diferença.
Se alguma coragem existe neste blog que, no fundo, sou eu, é a coragem de conquistar a minha liberdade e a minha diferença passo a passo, dia a dia, e porque de um blog de escrita se trata, palavra a palavra, frase a frase, texto a texto, ir usando este espaço para com alguma ousadia e muita dor aqui me expor para quem me quiser, ler, ver e sentir.
O QUE AQUI LÊEM SOU EU!
O QUE AQUI VÊEM SOU EU!
O QUE AQUI SENTEM SOU EU!
São muitos os blogs onde vejo coragem. A coragem pode tomar as mais variadas formas, e é bom que assim o seja.
O último livro de Rui Zink, “A espera” tem uma passagem que me agradou especialmente:
“Adoro dizer isto: Não é o meu problema. Haverá expressão mais contemporânea?...”
…“É injusto haver quem saiba qual é o seu problema e haver outros que não sabem qual é o seu problema.”
“É um direito básico da humanidade, o direito ao nosso problema.”…
…“O problema é que, se calhar é esse o nosso problema. Não sabemos qual ele é de tantos problemas que há no palheiro. O problema é exactamente o inverso, o palheiro está repleto de agulhas, aliás tem menos palha que agulhas. Qual é a nossa afinal?”…
Gostei muito desta forma de pôr a questão. Os problemas são tantos que, muitas vezes, não temos ideia qual é o nosso. Queríamos saber mas não o conseguimos identificar no meio de tantos. Assim encolhemos os ombros e simplesmente dizemos: Não é o meu problema.
É de coragem, de “ tomates” se assim preferirem, pegar numa das muitas agulhas do palheiro identificá-la como nosso problema e não digo resolvê-lo ou soluciona-lo, porque nem todos os problemas são para resolver, mas sim aborda-lo.
Ter um blog corajoso é ter uma agulha na mão e dizer: Este é o meu problema de momento, amanhã será outro ou não, não importa".
O que importa é que agora este é o meu problema!
O que importa é pegar numa agulha e identificá-la como nossa.
A minha agulha, o meu problema é escrever, cada vez melhor, cada vez mais livre, cada vez mais igual apenas a mim, cada vez mais próximo de quem me lê, cada vez mais “esfrangalhada”, cada vez mais escancarada, nas minhas próprias palavras.
A minha agulha é tornar as minhas palavras cada vez mais um reflexo de mim.
Os meus nomeados são blogs, que têm dentro deles pessoas com agulhas na mão:

O António Melenas, do“ Escritos Outonais”,
http://escritosoutonais.blogspot.com/,
o homem coragem, alma, pensamento e coração, com a sua enorme força e as suas humanas fragilidades, com a sua grandeza e as sua pequenez, com a sua politica alfinetando aqui e ali, com as suas cicatrizas orgulhosamente à mostra e mais do que tudo, com a sua gigantesca paixão pela vida, sempre, sempre presentes.
Ali, no seu blog, está ele, o grande homem que sabe que é grande e é pequeno.
Ali, está ele, contado por si mesmo, com as palavras que nasceram e cresceram da sua própria vida, com a tinta amadurecida pelo seu próprio tempo.
Ali, está ele, cansado mas em pé, em poesia e em prosa, romântico e revolucionário, clamando mudança, ou segredando doces palavras de amor.
Ali, está ele, cansado mas em pé, desde miúdo até aos dias de hoje.
O António tem na mão a agulha da sua própria vida.

A Bettips, do“Bettips” ,
http://bettips.blogspot.com/,
a mulher dádiva. A mulher de dar. A mulher que dá. Dá, dá e dá e fá-lo por reunir em si duas das capacidades mais difíceis de encontrar num ser humano: a de estar presente e a de saber permanecer.
Ter uma delas já é pouco frequente, reunir as duas numa pessoa só é uma verdadeira raridade.
Ela tem esta capacidade e com coragem pegou nesta agulha.
Como se isto ainda fosse pouco fá-lo sem se desvendar.
Ela é e será sempre, também, a mulher mistério.
Recebemos tanto dela e dela nada vimos, nem sequer a mão que nos estende, apenas um véu sem cor e com todas as cores,esvoaçando com o vento, deixando no ar um cheiro a terra e a mar.
Ela é o líquido fresco que bebemos, nos sacia a sede mas nunca conseguimos olhar, não sabemos que cor tem, não lhe reconhecemos o sabor, nem adivinhamos as formas que pode tomar.
A Bettips tem na mão a agulha de estar presente e de ficar, de dar sem se mostrar.

O Daniel, do“ Brinco de palavras” , http://brincosdepalavra.blogspot.com/,
o homem das palavras sérias a brincar, o homem das palavras brincadas a dizer coisas sérias.
O homem das palavras a brincar com as palavras e ele no meio absorvendo o sério resultado de tanta brincadeira.
O homem das palavras sérias, a dizer coisas sérias e ele no meio brincando com o resultado de tanta seriedade.
O Daniel o homem da coragem de brincar com as palavras e a brincar a brincar deixar-nos pasmados com o alcance de uma brincadeira de texteiro, como ele se intitula.
O Daniel tem na mão uma agulha que diz “ Eu brinco seriamente com as palavras e deixo que as palavras brinquem comigo também”.

O Paulo Guerreiro, do“ Um dia depois…”,
http://sambock.blogspot.com/ ,
o homem das guerras internas e com o mundo, corajosamente luta consigo mesmo e com o que o rodeia, com um impressionante misto de bravura e fragilidade perfeitamente assumidos.
Todos os seus textos, mesmo o aparentemente mais doce, são fruto de uma luta que começa, continua ou termina numa luta de palavras.
O Paulo Guerreiro é um Guerreiro, de si mesmo, da vida, das palavras.
Vai a luta e sabe que, quer saia glorioso, quer saia arrastando-se pela lama, quer permaneça eternamente a lutar, ele é sempre um vencedor.
O vencedor é quem lá vai. Ir à luta é já uma vitória. O Paulo vai sempre.
O Paulo tem na mão a agulha do Guerreiro.

A Velas, do blog “As velas ardem sempre até ao fim”
http://velasardemsempreateaofim.blogspot.com/ ,
a mulher sinceridade, é ela própria uma vela sempre a arder, e arde com um admirável e surpreendente sinceridade.
Abre-nos o seu mundo, assim como quem abre a porta de sua casa.
Convida-nos a entrar com um sorriso, às vezes alegre, outras vezes triste. Mostra-nos os seus recantos especiais, o cantinho onde se esconde do papão, a casa de bonecas onde ainda criança continua a aprender a brincar. Fala da sua vida de adulta, das alegrias, das frustrações , da solidão, dos amores e das paixões, conta-nos do que gosta mais, do que gosta menos e o que gosta assim-assim e até o que faz um esforço para gostar. Faz-nos prestar atenção, às fotografias que trazem as recordações e embalada pelo passado diz-nos o presente enquanto de olhar sonhador sonha mesmo à nossa frente os seus sonhos de futuro.
Uma vela bela a arder até ao fim.
A Velas tem na mão a agulha da sinceridade.

E pronto, peço desculpa se alterei o nome desta nomeação, mas esse não é o meu problema!
Também não vou colocar aqui o selo com os “ tomates” que acho feio como tudo.
Vou colocar, em seu lugar uma fotografia escolhida por mim.
Mantive o sentido deste prémio o que já não é nada mau.
Quanto aos nomeados por mim, gostaria que não se sentissem presos a nenhuma corrente bloguista.
Se os nomeei e o fiz da maneira que sei fazer, foi por ter vontade de lhes elogiar a coragem de serem livres e não para os aprisionar em nenhum tipo de corrente.
Continuem os vossos blogs, isso sim, é importante.
E passem por aqui de vez em quando, que tê-los cá é um prazer.


Isabel



"Aprendendo a voar apartir do chão"
Fotografia de Fernando C

sexta-feira, junho 01, 2007

Histórias da minha solidão

Duras, o prazer de a desconhecer

“Não há dois tempos iguais de solidão porque nunca se está só da mesma maneira.” (Henri Bosco)

“A solidão é um lugar estranho”
Li, ouvi, a alguém, algures, não me lembro quando nem onde.
Talvez a mim própria em dia de mentir.
A minha solidão nunca teve lugar. Está em todos os lugares.
A minha solidão nunca teve tempo. É constante. É permanente.
É um único e raro “sempre”.
A minha solidão não é estranha. Não há como estranhar o que é parte de nós.
A minha solidão é a amiga mais amiga.
A minha solidão é a família mais familiar.
A minha solidão é a amante mais amável.
A minha solidão é a confidente mais confiável.
A minha solidão veio e ficou.
A minha solidão veio um dia e ficou para o resto dos dias.
Para sempre.
A minha solidão é cativa de mim e cativa em mim cativa-me.
A minha solidão cativou-me e eu dela fiquei cativa.
Eu sou a sua prisão, ela é a minha companheira na prisão da vida.
Não sai de mim porque não quer, eu não deixo e principalmente porque é minha.
É parte integrante de mim.
Para sempre.
Minha, portanto.
Quando ela entrou em mim eu já estava só.
A minha solidão chegou para me fazer companhia, porque eu estava sozinha.
Não nasceu comigo.
Eu nasci com a minha mãe.
Há quem já nasça só.
Com a mãe já ausente.
Eu não.
Eu nasci com a minha mãe.
Só fiquei só depois.
Pouco depois, não me lembro quando.
Esqueci ou fiz por esquecer.
Esta solidão, que nesse dia ainda não era minha, ouviu-me rir, viu-me o riso, olhou-me nos olhos, espreitou para dentro de mim através da minha boca, encostou-se à minha pele e teve um arrepio.
Nunca tinha sentido ninguém tão só.
Uma criança, apenas!
Não sabia sequer que uma criança podia estar tão só.
Ficou por ali um bocadinho.
Olhando-me, sentindo-me, pensando.
Tão pequenina e tão cheia de um vazio imenso! Pensou sobre mim essa solidão, que ainda não era minha.
Quis ficar comigo.
Quis entrar em mim e tornar-me menos só.
Entrou devagarinho, para não me assustar.
Toda eu era fendas. Era fácil ter por onde entrar.
Entrou em mim, pelas fendas da minha pele e lentamente foi enchendo todo o vazio que em mim encontrou.
A solidão veio para viver no espaço onde vivia o meu vazio.
Ocupou-o e eu deixei.
Eu tinha frio e ela era quente.
Foi ficando, ficando, ficando até que ficou.
Acreditei que tinha ficado para sempre.
Doce acreditar!
Acreditei que não iria embora nunca.
Acreditei que era confiável.
Acreditei que era permanente.
Acreditei que não me iria abandonar nunca.
E não.
Nunca vai embora.
Não me abandona nunca.
Está sempre cá, aqui, em mim, presente.
Não importa que eu esteja presente ou ausente do mundo ou até dela, ela está sempre presente em mim.
Ela veio e ficou cá.
Vive cá.
Vive aqui.
Vive comigo.
Fez-se família e familiar.
Fez-se um” sempre”como sempre as famílias deviam ser.
Quis acreditar nela e acreditei.
Ela era o meu único “sempre” e as crianças precisam de um “sempre”.
Até eu que já estava só.
Ela era o meu “sempre”.
Era a minha segurança.
Estava lá comigo e para mim.
Sempre num sempre que era mesmo sempre.
Embalava-me o sono.
Acompanhava-me o riso.
Espreguiçava-se comigo, ao acordar.
Vinha às minhas cavalitas para a escola.
Escondida atrás da minha orelha lia comigo o que o giz branco escrevia no quadro negro. “Temos de aprender isto”. Dizia-me baixinho.
Agarrava-se com força aos meus cabelos compridos e vinha neles a balouçar, enquanto eu, sempre sem pressa de chegar a casa, vadiava, por lugar nenhum, todos os dias, ao fim da tarde dos dias.
Ajudava-me, concentrada, com os meus trabalhos de casa, nas raríssimas vezes que eu os fazia.
Deitava-se ao meu colo na “chaise longe” da casa da minha avó, onde eu vivia, e as duas ficávamos a imaginar os lugares onde gostaríamos de estar, até a voz da avó nos chamar para jantar.
Jantava comigo com um apetite tão devorador como o meu. Não sei qual de nós comia mais se eu se a minha solidão.
Olhávamos a televisão, sem interesse, aborrecidas e indiferentes, fazendo tempo para ir para o quarto.
Começámos a ir para o quarto cada vez mais cedo.
Era lá que guardávamos os livros.
Tínhamos de ter cuidado com os livros. Não os deixar na sala nunca. Os outros viam e diziam à avó que não eram coisas próprias para a minha idade. A avó que nada sabia de livros acreditava e ficava muito preocupada.
Não queria a avó preocupada mas queria ler.
O quarto era seguro.
Era lá que líamos, líamos, líamos, sem prestar atenção aos gritos da avó dando a ordem de ir para a cama.
A verdade é que pouca atenção prestávamos às ordens da avó, nem às dos professores, nem às de ninguém, fossem elas quais fossem.
Apenas as ordens do pai e da mãe tinham importância. Mas só vinham ao fim de semana e davam poucas ordens.
Tínhamos uma liberdade nossa.
Nunca fui tão livre, acho.
Depois de ler muito, adormecíamos esgotadas, com os olhos a doer e os sonhos eram feitos de palavras de outros mundos. Mundos sonhados que nem nos livros havia.
Eu às vezes chorava.
Sentia-me pequenina, desprotegida e só.
A minha solidão consolava-me: Estou aqui tolinha, não vês? Não estás só. Tens-me a mim. Eu não te vou deixar nunca.
Era o meu conforto.
Era a minha mana.
Era a minha outra família. A família que estava sempre comigo.
Como eu criança ainda achava que as famílias deviam estar.
Um dia, depois de muito tempo juntas, ela entrou ainda mais dentro de mim.
Foi num dia em que eu me rasgava de dor.
Ela entrou, devagarinho, pelo rasgão que me cortava a veia, como antes entrara devagarinho por uma fenda na minha pele. Passou nesse dia a fazer parte do fluxo do meu sangue.
Tornou-se sangue no meu sangue.
Mais que familiar ela agora era eu.
Era ela em mim e eu nela. Ela e eu em fusão.
Ela, fundida em mim.
Eu, fundida nela.
Nunca mais só, sempre com ela por companhia.
Ela não vive dentro de mim, entenda-se.
Eu sou a casa onde eu e ela nos habitamos.
Sem ela e sem mim esta casa que sou eu era uma casa vazia.
Permanentemente vazia.
As visitas temporárias a esta casa não a enchem.
Nem ocupações ocasionais.
Nada.
Chegam com a mesma facilidade com que vão.
Enchem, sem preencher, espalham sem expandir.
Ocupam o espaço que já não está vazio e esvaziam-no sem nunca o terem cheio.
Vazia de preenchimento estaria sem ela e sem mim esta casa que sou eu.
Vazia de um “sempre” estaria sem ela e sem mim esta casa sem lar que sou eu.
Foi neste estado de solitário preenchimento que a encontrei pela primeira vez: Duras.
Marguerite Duras.
Algo nela me mudou, a mim e à minha solidão.
Mudou o que eu entendia por palavra.
Deixei de as tentar entender.
Passei a amá-las, simplesmente.
Acrescentei-lhes prazeres vários.
Prazeres de pele.
O prazer do toque no papel do livro.
Acariciando as folhas.
Desejando as letras.
Ansiando as palavras.
Saboreando as virgulas.
Degustando os pontos.
Hesitando avançar, continuar.
Tocando o durante sem sequer roçar o fim.
Lambendo as pontas dos dedos.
Molhando os cantos das páginas.
lambendo
molhando
chupando
sem engolir
entrando
devagar
sem penetrar
amando
amando
amando
as palavras que vivem nos livros
e que também vivem em mim.
Passei a ter mais uma amiga.
Especial.
Muito especial.
Uma amiga que me iniciou numa nova era.
"Muitos homens iniciaram uma nova era na sua vida a partir da leitura de um livro". (Henry Thoreau)
Eu iniciei uma nova era, um novo tipo de solidão depois de aos 12 anos ler Duras.
Duras escreveu “Escrever é também não falar. É calar-se. É gritar sem ruído”.
Eu e a minha solidão líamos e calávamo-nos , gritávamos e berrávamos com toda a força do nosso silêncio.
Falávamos com ela, falávamos horas a fio, sem um som.
Ela escrevia e eu lia.
Ela expulsava e eu absorvia.
Ela dava e eu recebia.
Ela era uva e eu comia.
Ela era vinho e eu bebia.
Ela era a papoila que eu contemplava.
Ela era o ópio que eu fumava.
"Os leitores extraem dos livros, consoante o seu carácter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco das flores retiram, um o mel, a outra o veneno". (Nietzsche)
Duras era o veneno com sabor a mel que bebi sôfrega desprezando o antídoto.
O que ela tinha?
Não sei.
Falava a mesma linguagem que eu e a minha solidão, acho, hoje, sem muita certeza.
Nunca gostei de certezas, nunca as procurei, nem sei o as certezas são.
Gosto de Duras, muito, acho.
Talvez a ame até.
Não sei quem ela foi. Busquei nela tudo menos certezas. Não lhe fiz perguntas. E dela não tive respostas.
Ainda bem!
"Que importa que já o saibas? Só se sabe o que já nos não surpreende". (Virgílio Ferreira)
Não quero saber, quero ir sabendo.
Não quero conhecer, quero ir conhecendo.
As coisas acabam quando as conhecemos.
As coisas acabam quando cessam de nos surpreender.
Li tudo de Duras.
Conheço-a tão pouco. Surpreende-me tanto ainda.
Ainda bem!
Ela morreu mas não acabou.
Deixou livros para nos envenenar com palavras cobertas e encobertas de surpresas.
Amo-a, acho. Surpreendentemente, tenho, quase, a certeza disso.

O melhor da vida são as surpresas.
O melhor de nós é manter a capacidade de nos deixarmos surpreender.



Isabel


Fotografia de Dave

Nota:Este texto é também a resposta ao desafio lançado, à laia de castigo, pelo meu caríssimo Besnico di Roma, nas suas Memórias de um Amnésico http://memoriasdeumamnesico.blogspot.com/. O desafio consiste em escolher um meme.Eu não escolhi um, escolhi vários, escolhi todos os que estão a bold (negrito em Português), de outra forma fugiria ao tipico da pessoa excessiva que sou.
Resta explicar, a quem não saiba,o que é um meme:
Um meme, termo cunhado em 1976 por Richard Dawkins no seu bestseller controverso "O Gene Egoísta", é para a memória o análogo do gene na genética, a sua unidade mínima. É considerado como uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro, ou entre locais onde a informação é armazenada (como livros) e outros locais de armazenamento ou cérebros.
Os memes podem ser ideias ou partes de idéias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autónoma.