quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Começar de novo

Flor de jarra
As noites num hospital pouco têm a ver com os dias.
A agitação ruidosa dos dias esconde sons que a noite revela. Na calma aparente da noite, no seu falso silêncio, no seu angustiante sossego adensam-se as sombras.
A noite expõe o que o dia esconde com vergonha.
Desavergonhadamente fria é a noite no hospital.
Têm a mesma frieza com que são revestidos os seus longos corredores, a mesma frieza com que são pintadas as suas paredes, a mesma frieza que se entranha, vive, procria, nasce, cresce e se multiplica no tecido branco dos lençóis, a mesma frieza do excesso de branco que se espalha por todos espaços amplamente brancos e frios, ausentes do calor de cantos e recantos.
Branco na loiça, branco nas paredes, branco nas portas, branco no chão, branco nos lençóis, branco nas batas. Branco, branco, branco!
Branco pálido e frio gelando a vista e o coração. Tanta brancura gelada disfarçada de brancura imaculada. Tanta brancura fria, indiferente, fácil, inexpressiva, brancura de falta de cor, de amor e calor disfarçada de brancura de limpeza, desinfecção e higiene.
As noites são mais frias que os dias.
As noites são mais brancas que os dias.
Vão-se as visitas coloridas de penas, desejos e esperanças, vai-se a luz da vida que vive lá fora, fica apenas o hospital e a sua fria solitária e higiénica brancura.
Fica o hospital entregue a si mesmo.
O Hospital branco, as suas batas brancas vestindo de branco seres de todas as cores, as suas camas cobertas de branco e dentro de cada uma das suas camas brancas, por baixo de cada um dos seus lençóis brancos, pacientes de todas as cores cada um com o seu coração vermelho de sangue batendo.
Batendo, batendo a compasso. Tum! Tum! Tum! Tum! Batendo ao compasso da vida, mais fortes ou mais fracos, mas batendo e debatendo-se numa luta desalmada que só a noite deixa escutar.
Nas camas, nas enfermarias a luta é permanente. De dia e de noite os adversários enfrentam-se como num campo de batalha.
A vida e a morte, o desespero e a esperança, a dor e o alívio, a insónia e o descanso lutam corajosa ou cobardemente hora após hora, minuto após minuto, segundo após segundo.
O hospital não dorme nunca.
O hospital está sempre desperto.
Na escuridão da noite apura-se a visão temendo as sombras.
No silêncio da noite escuta-se cada som a solo e todos os sons em uníssono.
O hospital tem uma música própria, uma balada, uma sinfonia, um hino que todos, todos sem excepção, escutam quando deitados numa daquelas brancas enfermarias, numa daquelas brancas camas, cobertos por um daqueles brancos lençóis aguardando a noite passar.
Depois de um coma os sentidos, todos eles, aguçam-se, aperfeiçoam-se, apuram-se, elevam-se.
Vencedor da dura batalha com a morte regressa o guerreiro mais vivo e mais apto a defender a vida.
Depois do que a vida lhe custou a ganhar, sábio o guerreiro reforça as defesas para melhor a salvaguardar.
Assim se sentia Luísa, uma guerreira acabada de regressar do campo de batalha. Todos os sentidos despertos, toda a vida a pulsar nas veias a um ritmo, com uma força, com uma pujança nunca antes sentida.
Na sua cama, coberta com o seu lençol, sentia o corpo vibrante de vida.
Ondas de calor e de energia desconhecidas invadiam-lhe agora o ser.
Passava a mão pelo corpo e parecia-lhe ser capaz de sentir o sangue a correr desvairado pelas veias.
Sentia-se capaz de ver na escuridão e as outrora assustadoras sombras não a assustavam mais.
Na boca ansiosa dos sabores da vida reconhecia ainda o sabor agridoce da morte. Engolia em seco e as suas papilas gustativas pareciam gritar-lhe exigindo mais gostos, mais sabores, mais prazeres.
Respirava fundo.
Inspirava e expirava.
Cada vez que inspirava os cheiros eram tantos que era difícil conter a náusea.
Tantos cheiros têm um hospital! O desinfectante, o sangue, o medo, o desespero, a esperança forte ou vã e o cheiro fétido da morte eram os mais evidentes mas a estes muitos, muitos outros se misturavam.
A morte andava por lá caminhando com elegância, requinte e altivez pelos corredores, queixo levantado, costas direitas, dona e senhora ia marcando um território que já era parcialmente seu, ia largando o seu cheiro por todos os lados, quem não a via, sentia-a e cheirava-a.
Lá andava ela possuindo brutalmente uns, penetrando apaixonadamente outros, carregando docemente nos longos braços outros.
Caminhava com assumida nobreza pelos corredores do castelo que também era seu. Não se esgueirava, não se escondia, misturava-se subtilmente com as sombras do medo e da imaginação aguardando o seu momento, o momento de entrar na enfermaria, na cama, no, ser, na alma. Aguardava calmamente o momento de fazer seu mais um de nós.
Não havia desinfectante que lhe levasse o cheiro nauseabundo… a casa era sua, sua e de sua irmã vida. Dividiam a casa irmãmente mas era o cheiro da morte que mais se fazia sentir. Ali, naquela sua casa o seu território estava já marcado para sempre.
Havia ainda o som.
A música.
Luísa escutava tudo.
Cada gemido, cada apelo, cada grito.
Cada suspiro, cada alivio.
Cada reza, cada pacto, cada promessa, cada oração.
Luísa agora escutava tudo e sabia que o som daquela música não esqueceria nunca.
A música do hospital e a lembrança do bafo quente e malcheiroso da morte davam-lhe ganas de vida.
Davam-lhe ganas e saudades de vida.
Da vida e dos seus mais simples e mais deliciosos prazeres. Eram detalhes, detalhes apenas que lhe davam sabor.
Detalhes que em vida havia esquecido ou desvalorizado e que a experiência da morte a fizera recordar e valorizar de novo.
O brilho da luz da manhã por entre as persianas.
A água fresca no rosto.
A sua imagem no espelho.
O cheiro do café.
O pão coberto de manteiga.
O toque do telefone.
A voz de um amigo.
O motor do carro.
A janela aberta.
O vento no rosto.
O início de um novo dia enchia-a de saudades agora.
Apenas agora, depois de achar que mais inícios de dias não ia ter.
A morte tinha-a feito renascer.
Teve vontade de fazer amor.
Teve vontade de tocar outro corpo.
Teve vontade de beijar.
Teve vontade de boca com boca soprar toda a vida que tinha dentro de si para a boca de outro alguém.
Teve vontade de lamber outros lábios.
Teve vontade de fazer a sua língua rodopiar com outra língua e se afundar na saliva de outra boca.
Teve vontade de todos os sabores que outro ser tem para dar.
Teve vontade de roçar a sua pele noutra pele.
Teve vontade de misturar as gotas do seu suor com as gotas de outro suor.
Teve vontade de ver e desejar o desejo noutro olhar.
Teve vontade de gemer e suspirar em coro com outros gemidos e outros suspiros.
Teve vontade de prazer dado, trocado, oferecido, retribuído, partilhado, usado, rendido.
Teve vontade de um outro, um outro com cheiro e sabor a sémen.
Teve vontade de um homem.
A vida palpitava-lhe agora entre as pernas e os dedos quiseram sentir a vida a palpitar e palpitar com ela
Dançaram-lhe os dedos, dentro e fora dela, deslizando suavemente entre a seiva viva que dela escorria.
Quando parou deixou a mão ficar entre as pernas e sentiu-se inteira palpitar.
Palpitava ali onde a mão molhada se deixara ficar, palpitava-lhe o coração forte e ritmadamente e palpitava-lhe a alma engrandecendo-se exaltada.
Tum! Tum! Tum! Afinal havia um coração a bater por ela toda.
Era o coração ou era a vida, por ela e dentro dela a bater?
Sorriu!
Amanhã tinha alta.
Amanhã ia sair.
Sair para onde?
Sair em que direcção?
Para fazer o quê?
Já não era a mesma, tudo tinha mudado.
A morte fizera-a nascer de novo.
A memória retrocedeu sem medo. Foi ver como tinha sido aquele dia.
Não ouve desespero se é o que esperam.
Não houve choro, nem tristeza.
Não houve gritos nem descontrole.
Não houve lágrimas, nem baba, nem ranho.
Não houve raiva ou revolta.
Houve apenas uma mulher que chegou um dia a casa mais cansada que todos os outros dias.
Houve apenas uma mulher que chegou a casa um dia carregando o cansaço acumulado ao longo de todos os outros dias.
Houve apenas uma mulher frente a frente com esse cansaço.
Houve apenas uma mulher que olhou para si própria e nada lhe fez sentido.
O cansaço era tanto que sentiu que as forças se tinham esgotado.
Sentiu que tinha chegado ao fim.
Fim da linha.
Fim de percurso.
Fim do caminho.
Não viu razão para mais um dia.
Para mais um esforço.
Para mais um despertar.
Mais um banho.
Mais um pequeno-almoço.
Mais uma ida.
Mais um café.
Mais um dia de trabalho.
Mais umas palavras sem significado trocadas sem vontade e sem memória. Mais um regresso.
Mais um jantar.
Mais um fim de dia.
Mais uma noite.
Mais um sono.
Mais um sonho também ele sempre igual, também ele sempre e apenas mais um: o sonho de que o dia seguinte não seria apenas mais um dia mas era-o sempre, sempre apenas mais um, sempre apenas mais um igual aos outros, mais um a seguir a outro igual ao anterior.
Dias sempre iguais como sempre iguais eram sempre os seus sonhos de que os dias fossem diferentes para que diferentes pudessem ser também os sonhos.
Faltou-lhe a força para somar mais dias iguais aos dias já somados.
Tirou o casaco e fez um último esforço, foi à gaveta dos comprimidos e trouxe todos.
Encheu um copo de água.
Sentou-se na sala e colocou os comprimidos em fila em cima da mesa.
Eram muitos, de várias cores.
Colocou-os combinando as cores e o número como quem faz um colar de contas.
2 Brancos, 1 azul claro, 1 branco 1 azul mais escuro, 1 branco 1 verdes, dois brancos, 1 azul claro, 1 branco 1 azul mais escuro, 1 branco, 1 verde 2 brancos…
Olhou-os e achou bonito.
Tomou-os lentamente com o mesmo critério com que os colocara em cima da mesa.
2 Brancos, 1 azul claro, 1 branco 1 azul mais escuro, 1 branco 1 verdes, dois brancos, 1 azul claro, 1 branco 1 azul mais escuro, 1 branco, 1 verde 2 brancos…
Era uma mulher especial Luísa, tinha um charme próprio, um estilo característico, discreto mas de uma sofisticação fora do comum.
Tinha uma doçura estranha.
Uma doçura tão poderosa que quase se tornava diabólica.
Quando Luísa sorria o mundo inteiro parava para a ver sorrir.
Quando Luísa sorria o mundo inteiro se esgatanhava para beber o mel daquele sorriso.
Quando Luísa docemente sorria o mundo competia com ferocidade pelo poder de poder ter a doçura daquele sorriso.
Luísa sabia que quando sorria o mundo ficava pior.
Mas sorria continuamente.
Derramava sorrindo o mel que lhe nascia no coração.
Luísa sorria estranhamente e em excesso.
Luísa era assim: estranha e excessiva.
Era-o na forma como organizava e ordenava quase tudo.
Era-o na forma de se vestir, na forma de coordenar os acessórios, na maneira de dispor os objectos pela casa, no trabalho, na cozinha, na vida.
Fora-o também na morte.
Quis morrer da forma como vivera.
Quis ser a mesma Luísa na morte que fora na vida.
Agora que pensava nisso achava-se monótona.
Agora que pensava nisso via o ridículo da coisa, cansada de dias sempre iguais matara-se de forma igual aos seus dias iguais.
Ana!
Ana nunca se mataria assim.
Ana nunca se mataria, nem assim nem de qualquer outra forma.
Ana seria capaz de matar mas não se mataria nunca.
Ana não iria gostar de saber a forma organizada e pouco teatral como ela, Luísa, se matara.
Imaginava-a dizer-lhe: - Ai Luísa, que raiva criatura, não te enjoas de ti própria? Muda mais! Varia mais! Não sejas sempre a mesma, tão doce, tão correcta, tão coerente, tão previsivelmente enjoativa! Até porque isso tudo é uma treta, uma mentira, a que desde que nos separamos tens habituado os outros e até a ti, querida amiguinha.
Tu tens esse coração de mel é verdade, tens essa doçura, é verdade. Mas esse mel e essa doçura são perigosos e tu sabes e usas e abusas disso. Muitas vezes és uma víbora, mazinha e tu bem sabes disso.
Tu e eu sabemos isso.
Tu e eu construímos-te assim.
Luísa imaginava as palavras de Ana e imaginava-se com o tal sorriso respondendo que sim.
E sim Ana teria razão.
Ela e Ana conheciam-se melhor que ninguém.
Ela e Ana tinham-se construído juntas.
Conheceram-se no início da adolescência quando as personalidades se principiam a definir.
Dois seres solitários, com uma inteligência incomum, um aspecto incomum, uma maturidade incomum, uma coragem incomum, uma empatia imediata incomum.
Criaram-se.
Construíram-se.
Inventaram-se juntas.
Foram-se fazendo a si próprias e uma à outra a medida da vontade e da necessidade.
Fizeram-se sem deixar o mundo ter voto na matéria.
Construíram-se para se admirarem e se usufruírem mutuamente e em exclusivo uma à outra.
Ocasionalmente, ocasionalmente apenas, era permitido a outros fazerem passagens rápidas pelas suas vidas.
Gostavam de ser admiradas. Gostavam de seduzir.
Ambas eram criaturas muito sedutoras, ambas eram jogadoras. Ambas se tinham viciado na sedução como um jogo. Um jogo que se ganha ou se perde. Ambas jogavam para ganhar sempre. Essa era uma regra incontornável: não admitir jamais outra hipótese, apenas vencer. Ainda assim ambas jogavam pelo prazer do jogo e não pela ânsia da vitória ou pelo valor do prémio. O prémio era o que se divertiam juntas jogando e ganhando, nada mais.
O facto de terem uma aparência estranhamente cuidada para a idade, de serem estranhamente diferentes uma da outra, de estarem estranhamente ligadas e de falarem uma estranha linguagem que só elas entendiam, era já meio caminho andado neste jogo de sedução.
Uma espécie de código postal da sedução.
Esta estranheza, evidente ao primeiro olhar era o canto da sereia que atraía como um íman os olhares, as atenções e a curiosidade sobre elas.
Homens e mulheres, novos e velhos rendiam-se aos seus encantos, deslumbravam-se e sucumbiam perante aqueles dois seres estranha e poderosamente sedutores.
Na verdade elas pouco se importavam com quem seduziam, usavam e deitavam fora indiferentes ao rasto de mágoa que deixavam ficar para traz quando misteriosamente desapareciam de cena.
Quando se tratava de sedução até ela, Luísa, que era a sensível e bondosa das duas, se tornava má e cruel tal era a indiferença com que tratava as vítimas dos seus jogos de sedução.
Poucos dos que saíram derrotados e falidos de orgulho daquele jogo se aperceberam que de facto Ana e Luísa se seduziam uma à outra.
Eles eram apenas jogadas de um jogo maior que era a sedução permanente entre as duas.
Não era uma sedução sexual, nada tinha de sexual.
Era uma sedução intelectual, emocional, de alma, uma sedução com o poder de mexer com todos os sentidos.
Diziam muitas vezes uma à outra: - Em qualquer relação a sedução tem de ser permanente, na amizade como no amor tem de haver sedução para que não se instale o tédio.
Quando Ana a chamava enjoativa e sempre igual estava apenas a puxar por ela a desafia-la mais e mais.
Ambas o faziam.
Desafiavam-se sem limites.
E sem limites aceitavam qualquer desafio.
Entre elas não havia 1 minuto de tédio… cresciam e modificavam-se, a si mesmas e uma à outra surpreendendo-se e complementando-se a cada dia.
Exigiam mais e mais e a fonte não secava nunca, regavam-se e floresciam, regavam-se mais e floresciam mais.
Agigantavam-se uma na outra, uma para a outra.
Pareciam ter criado a relação perfeita.
Eram perfeitas juntas.
Flores belas e gigantes.
Duas flores ligadas uma à outra eternamente, duas flores presas à mesma raiz.
Esqueceram-se de pensar como seriam separadas.
Separadas uma da outra, desenraizadas.
Luísa pensa nisso agora.
Recorda o aparecimento do João.
Recorda o turbilhão de sentimentos que tomou conta dela e com os quais nem ela nem Ana contavam.
Recorda o primeiro beijo do João. Não sabia a jogo como todos os outros beijos.
O beijo do João sabia a ele e era dele o sabor que ela buscava nos seus lábios.
Recorda a paixão que a dominou por completo.
Ela e o João não pensavam em mais nada que um no outro, não queriam mais nada do que estar um com o outro, um dentro do outro.
Gostava de sentir sobre ela aquele domínio, que fora sempre ela a exercer sobre os outros.
Gostava de se sentir rendida como sempre a ela se tinham rendido.
Estava fascinada pelo João. O João estava fascinado por ela e por Ana.
As duas tinham-lhe chamado a atenção. Seduzira uma envolto no fascínio das duas.
Amava Luísa, mas Ana estava sempre, sempre presente no seu imaginário, nas suas fantasias, nos seus sonhos.
Depois da noite em que Ana desapareceu, o João foi-se modificando, foi ficando ausente, desinteressado acabando por desaparecer também.
Luísa não precisou que lhe explicassem, era demasiado inteligente para cegar perante a paixão e demasiado sensível para não ter sentido na pele, sobre a pele, dentro da pele, dentro da alma, dentro do coração dentro de todo o seu ser, de toda a sua essência, o que se tinha passado.
Foi-se tornando claro, penosamente claro, foi transparecendo dolorosamente.
Ela e Ana tinham cometido um erro grave.
Construíram-se para se completarem.
Ficavam incompletas uma sem a outra.
Uma sem a outra eram um intricado puzzle com apenas metade das peças.
Impossível de resolver. Desprovido de sentido. Sem razão de existir.
Uma sem a outra eram uma obra inacabada.
Um edifício sem estrutura, pronto a ruir.
Luísa ficara incompleta.
Ana partira incompleta.
Ambas o foram percebendo quando se viram uma sem a outra.
Ambas o foram percebendo quando deixaram de se sentir inteiras.
Não estavam inteiras, só eram inteiras juntas.
Separadas não tinham raiz, não cresciam, não floresciam.
Separadas eram flores de jarra aguardando inevitavelmente murchar.
Lutaram como puderam.
Tentaram reinventar-se como puderam.
Mas iam murchando.
Encarquilhavam lentamente na ausência uma da outra.
Viviam cada uma à sua maneira murchando na saudade.
Que grande erro tinham cometido!
Que grande falha as tinha destruído!
Estariam a tempo de remediar o erro?
Como se corrige a criação de duas aberrações?
Como se tratam e curam duas flores gigantes, dois monstros doentes de dependência.
Ela, Luísa, sentia-se renascida, fortalecida, cheia vontade de vida mas sabia não ser suficiente.
Continuava na jarra. Uma jarra mais bonita, mais ampla, com água limpa, nova e fresca. Mas continuava numa jarra.
Quanto tempo duraria até murchar de novo?
Como se corrige a criação de duas aberrações?
Como se tornam duas flores doentes em duas flores saudáveis?
Luísa não sabia a resposta mas sabia que tinha força para a procurar.
Tinha de aproveitar essa força agora, não sabia quanto tempo a ia ter.
Tinha saudade.
Tinha saudade da aberração que a completava.
Tinha saudades de se sentir completa.
As duas eram perfeitas.
Queria voltar a ser.
Perfeita, ou imperfeita, tanto fazia.
Queria voltar a ser.
Queria ser.
Queria ser e sentir tudo de novo e tudo pela primeira vez.
Queria aprender a ser independente de Ana e ama-la assim.
Queria aprender a ser independente de Ana e senti-la assim.
Tinha saudades! Tantas, tantas saudades!
Amanhã tinha alta.
Depois de amanhã consulta de psicanálise.
Sorriu.
Imaginou o psicanalista perguntar-lhe o porquê?
Soltou uma sonora gargalhada.
Um som pouco usual na noite do hospital.
Dir-lhe-ia apenas que estava cansada e precisava descansar.

Voltou a sorrir, doce, docemente.
Morreu 5 dias para descansar.
Agora chegava.
Não queria descansar mais.
Queria viver.
Procurar Ana.
Tinha de procurar Ana.
Tinham de resolver o erro juntas.
Queria sair dali.
A vida chamava por ela lá fora.
Ana chamava por ela.
Amanhã tinha alta.
Depois de amanhã consulta de psicanálise.
Iria?
Onde estaria depois de amanhã?
Por que caminhos as ganas de agarrar a vida a levariam.
Iria sem medo aprender a florescer independente.
Independente, não só!
Queria tocar, sentir, acreditar de novo.
Teve vontade de fazer amor.
Teve vontade de um sorriso.
Teve vontade de um abraço.
De um beijo.
De um toque.
De uma carícia.
Da voz de Ana.
Recordou a voz de Ana, o toque da mão de Ana sobre a sua mão enquanto descansava morta.
Aquele toque, aquela voz completaram-na.
Ter-lhe-ia Ana salvo a vida?
Recordou o calor e o brilho da luz do sol no rosto pela manhã.
Teve vontade que a noite terminasse.
Teve vontade de começar o dia.
Adormeceu e sonhou com um dia diferente como sempre o fizera.
Desta vez faria com que fosse verdadeiramente diferente.
Estava nas suas mãos mudar a sua vida, os seus dias.
Iria procurar Ana.
Amanhã?
Depois?
Não sabia quando.
Adormeceu enroscada na saudade.


(Continua)

Isabel
"Da jarra"
Fernando Penin

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Começar de Novo

Aquela noite
Estou sentada buscando alívio neste imenso, mas que adivinho breve, silêncio.
São os seus passos que interrompem o silêncio.
Escuto-os na escada.
Conheço bem aqueles passos.
Odeio-os.
Os passos.
Os pés.
As pernas.
Odeio aqueles passos.
Odeio aquele andar
Há andares que se movem mantendo a inércia.
Há andares que se deslocam e não saem do mesmo lugar.
Há andares que andam sem andar. Andam mas não avançam.
O andar que sobe as escadas é desses.
Gosto do som destes passos descendo a escada. Afastando-se.
É quando sobem que não os suporto. Aproximando-se.
Virão caminhando para mim, julgando ser possível alcançar-me mas eu não sou alcançável.
Estou longe... distante... afogo-me na vontade de partir e sei que no fundo já parti.
Os passos passam por cima do silêncio.
Do meu silêncio.
Pisam-no.
Esmagam-no.
Silenciam-me a mim.
Afasto-me.
Outra Ana vem em meu auxílio.
Ele aproxima-se, enlaça-a pela cintura e beija-a apaixonadamente.
Pensa que me beija a mim.
Eu assisto.
Hoje ele traz algo diferente nele.
Quero ir-me embora para não ver mais mas ele não está dengoso e mole como é habitual.
Assusta-me deixar a outra Ana só com ele.
Vejo-lhe um fogo no olhar que não tinha visto nunca.
Vejo-lhe as veias do pescoço inchadas.
As mãos parecem garras.
A voz está enrouquecida.
Os óculos estão embaciados do vapor quente que solta da sua respiração arfante.
A boca baba-se escorrendo pelos cantos uma saliva espumosa de cor esbranquiçada.
Parece um cão raivoso.
Repugnante!
Nojento!
O estômago revolvesse. Tenho vontade de vomitar!
Asco!
Asco!
E medo!
Medo pela Ana que lá ficou.
Devo ficar aqui.
Ela veio auxiliar-me, eu permanecerei aqui, olhando por ela.
Evitar o vómito Ana!
Evitar o vómito Ana!
Evitar o vómito Ana!
Repito para mim mesma.
Sento-me no sofá pequeno, em inglês love seat.
Irónico… amor é coisa que nesta casa não existiu nunca mas existe desde o inicio um sofá do amor.
Ele está por cima dela, investindo ritmadamente, penetrando-a com aquela coisa dura e peçonhenta que tem entre as pernas. Sua e guincha como um animal!
Evitar o vómito Ana!
Ela pobre Ana finge gostar, suspira intervaladamente imitando suspiros de prazer.
Anseia o fim. Conheço-a bem. Ela saiu de mim, afinal!
Queres que isto acabe não é Ana?
Está quase!
Hoje será ainda mais rápido do que das outras vezes.
Ele hoje está diferente.
Mais assustador.
Mais animal.
Mais nojento ainda.
O suor dele pinga sobre o belo peito nu da minha Ana.
Evitar o vómito Ana!
Evitar o vómito Ana!
Fala o animal… Porco!
Estou a vir-me querida! Diz ele.
Coitada da Ana!
É bom ter uma amiga assim.
Isto é uma amiga.
Estou a chorar.
Lembrei-me daquela maldita noite.
A noite em que as Anas começaram a aparecer.
Eu precisava de amigas assim.
Que estivessem lá quando eu precisasse.
Não como aquela idiota da Luísa.
Ela não estava lá.
A doce Luisinha tinha arranjado um namorado.
Nessa noite o namorado da Luísa roubou a Luísa de mim.
Quando tudo aconteceu aquela que dizia ser a minha melhor amiga, não estava lá, eu estava só entregue a mim mesma e aos acontecimentos.
Ela, a doce e maternal Luisinha estava ocupada a namorar ou a fazer amor de forma terna e sentida, como é próprio dela, que é uma idiota!
Demasiado ocupada para estar comigo e me proteger do que aconteceu.
Demasiado ocupada para estar comigo no dia do meu aniversário.
Sim, nessa noite era o dia do meu aniversário.
Eu e a odiosa Luisinha festejávamos os nossos aniversários desde que nos conhecíamos, as duas sozinhas, eu, ela e mais ninguém.
O mundo era nosso mas não o queríamos quase nunca e nesses dias em particular queríamo-nos apenas uma à outra.
Tínhamos um ritual só nosso.
Jantávamos sempre só as duas num sítio especial comíamos soberbamente, bebíamos o melhor vinho, falávamos, falávamos, falávamos, horas e horas, perdidas uma na outra e na forte amizade que nos unia e nos afastava do mundo. Quando chegava à altura dos Whiskys era hora de oferecer o presente, também sempre algo especial. Durante todos aqueles anos o presente era entregue junto com um postal, uma carta, uma simples folha, não importava o quê, bastava ser algo onde fosse possível escrever: “Obrigada por teres nascido”.
Nesse ano tudo foi diferente.
Eu escolhi cuidadosamente o restaurante e fiz a reserva, como sempre fazia.
Pus-me bonita para aquele dia como sempre fazia.
Cheguei a horas como sempre fazia.
Sorridente sentei-me, pedi o meu Martini branco seco, acendi o meu cigarro e esperei que a Luísa chegasse.
Ela atrasou-se muito, a reserva era para as 21.30, a Luísa chegou ás 22.05.
Sentou-se deu-me um beijo de parabéns e com notório nervosismo procurou de imediato o empregado para lhe pedir um gin tónico que bebeu quase na totalidade dum trago.
Depois olhou-me e disse: - Ana não tive tempo para o teu presente.
Não me importei, disse-lhe que não fazia mal. Que o importante era estarmos ali as duas, juntas como sempre.
Ela pousou os olhos sobre a mesa sem coragem de me encarar e disse: - Ana não tenho sequer onde escrever a nossa frase.
Voltei a dizer que não fazia mal, que desde que estivéssemos as duas nada afectava a minha felicidade nesse dia.
Ela fez um beicinho que eu adorava e me fazia sempre rir, hoje sei que o beicinho era tão falso como aquela amizade que eu acreditava a prioridade das nossas vidas. Com o falso beicinho colocado na face olhou-me e disse: - Ana, o João vem cá ter daqui por 1 hora.
Senti o coração apertar e as lágrimas subiram a longa escadaria entre o coração e o olhar em segundos apenas. Não sei como fiz mas apenas uma caiu sobre a pedra de gelo que dançava no meu copo, na minha mão.
Ainda assim, disse-lhe que compreendia, que sabia que iria ter de me habituar à presença do João e que embora fosse estranho talvez uma ocasião festiva como o meu aniversário fosse excelente para eu me começar a familiarizar com essa ideia.
Ela olhou-me em silêncio abanando a cabeça. No seu olhar havia pena.
Pena de mim!
Pena por mim!
Cheia dessa malévola pena disse-me: - Ana o João vem cá ter e eu vou sair com ele. Não vamos ficar contigo. Perdoa se te magoo.
Tentei tudo, juro que tentei tudo para evitar!
Mas a lágrimas entraram de rompão nos meus olhos, encheram-nos em instantes e logo desataram a rolar pelo meu ridiculamente bem maquilhado rosto.
Odiei-me por não as ter conseguido conter.
Odiei-a por me fazer aquilo.
Não olhei à volta mas sentia a pena espalhada pelo maldito restaurante e estampada na cara dela.
O João chegou e levou-a.
Ela foi depois de silenciosamente me dar um beijo e me limpar uma das muitas lágrimas em que me deixava afogar.
Não me lembro de ter pago.
Não me lembro de como cheguei ao bar perto de casa onde com propositada deselegância me embebedei festejando o meu primeiro de muitos aniversários na doce e fiel companhia da solidão e da tristeza.
Não me lembro quando desejei a minha cama com tanta força que esse desejo guiou os meus passos até casa.
Outros desejos se misturaram com os meus sem que eu tivesse dado por isso.
Não escutei os passos que seguiram o meu passo.
Meti a chave na porta da minha, pequena, mas tão minha, casa e quando a minha mão empurrou a porta para entrar fui também eu empurrada para o interior de uma sala que eu sabia ser a minha sala.
Da sala fui arrastada para o quarto e no quarto fui arrastada para o inferno.
Não sei como ele era.
Não recordo a dor no corpo. A dor na alma era incomparavelmente mais forte. Nenhuma dor física jamais seria capaz de superar a dor que me tomou conta da alma.
Cada rasgão no corpo, rasgava a alma, invadia-a, violava-a da forma mais brutalmente inimaginável mesmo pela mais fértil das imaginações. E a minha era-o.
De tudo recordo apenas com clareza uma voz. Aquele monstro doente penetrava-me selvaticamente enquanto com doçura me chamava querida.
A minha alma contorcia-se de dor num mar de vómito.
A minha voz gritava sem som, no mais puro silêncio.
O meu corpo lutava sem luta, na mais perfeita inércia.
A minha cabeça salvou-me.
Ajudou os meus olhos a verem aquele sítio diferente do que era antes.
Enquanto “aquilo” durou aquele sítio foi outro sítio para mim.
A minha cabeça sabia que eu tinha de continuar a lá viver mais uns dias… só o poderia fazer se não o recordasse como o local onde “aquilo” tinha acontecido, onde o monstro doente me tinha transformado a mim num monstro mais monstruoso ainda.
Ali, naquele local inventado, apareceu a primeira Ana, e depois dela muitas vieram ajudar.
A minha cabeça salvou-me do que o mostro doente e a minha doce amiga Luisinha me fizeram.
Ao monstro doente perdoei logo, era doente coitado!
A ela nunca.
Odeio-a tanto como a adorei antes.
Odeio-a tão profundamente como a profunda dor que me rasgou a alma entre palavras doces, sem dó nem piedade, naquela noite, naquela casa, naquela cama que eu sei era a minha.
Não atendi telefones, não abri a porta, não dormi, não falei, não comi, não sei durante quanto tempo.
Quando me consegui mexer, deitei o telefone fora e comprei um novo.
Empacotei as minhas coisas e mudei-me para a primeira casa que apareceu.
Desapareci só.
Eu e as Anas.
A Luísa morreu naquela noite, na minha cama, enquanto um monstro se satisfazia sobre mim.
Odeio-a.
Odeio-a tanto e sempre como a adorarei sempre tanto.
Luísa és má, sempre foste e eu não vi.
Fizeste-me um monstro quando naquela noite me deixaste só.
Um monstro de tristeza e solidão foi o que fizeste de mim Luísa?
Agora voltaste e sinto-te perto de novo.
Quero-te morta e sinto-te viva.
Sinto-te viva no mundo e dentro de mim.
És má Luísa… mas mais má é a minha vida sem ti.
Choro-te.
Enquanto te choro vejo as lágrimas escondidas nos olhos da outra Ana enquanto o animal com que casei se baba enroscado nela.
Coitada dela e de mim.
As duas mais mortas que tu Luísa, que te sinto viva.
Vontade de partir. De viver de novo. Vontade de te ver.
Vontade de partir para ti. Vontade de partir contigo.
Odeio-te Luísa.

(Continua)

Isabel

In‡erno
Fotografia de Akkad