Começar de Novo
Aquela noite
Estou sentada buscando alívio neste imenso, mas que adivinho breve, silêncio.
São os seus passos que interrompem o silêncio.
Escuto-os na escada.
Conheço bem aqueles passos.
Odeio-os.
Os passos.
Os pés.
As pernas.
Odeio aqueles passos.
Odeio aquele andar
Há andares que se movem mantendo a inércia.
Há andares que se deslocam e não saem do mesmo lugar.
Há andares que andam sem andar. Andam mas não avançam.
O andar que sobe as escadas é desses.
Gosto do som destes passos descendo a escada. Afastando-se.
É quando sobem que não os suporto. Aproximando-se.
Virão caminhando para mim, julgando ser possível alcançar-me mas eu não sou alcançável.
Estou longe... distante... afogo-me na vontade de partir e sei que no fundo já parti.
Os passos passam por cima do silêncio.
Do meu silêncio.
Pisam-no.
Esmagam-no.
Silenciam-me a mim.
Afasto-me.
Outra Ana vem em meu auxílio.
Ele aproxima-se, enlaça-a pela cintura e beija-a apaixonadamente.
Pensa que me beija a mim.
Eu assisto.
Hoje ele traz algo diferente nele.
Quero ir-me embora para não ver mais mas ele não está dengoso e mole como é habitual.
Assusta-me deixar a outra Ana só com ele.
Vejo-lhe um fogo no olhar que não tinha visto nunca.
Vejo-lhe as veias do pescoço inchadas.
As mãos parecem garras.
A voz está enrouquecida.
Os óculos estão embaciados do vapor quente que solta da sua respiração arfante.
A boca baba-se escorrendo pelos cantos uma saliva espumosa de cor esbranquiçada.
Parece um cão raivoso.
Repugnante!
Nojento!
O estômago revolvesse. Tenho vontade de vomitar!
Asco!
São os seus passos que interrompem o silêncio.
Escuto-os na escada.
Conheço bem aqueles passos.
Odeio-os.
Os passos.
Os pés.
As pernas.
Odeio aqueles passos.
Odeio aquele andar
Há andares que se movem mantendo a inércia.
Há andares que se deslocam e não saem do mesmo lugar.
Há andares que andam sem andar. Andam mas não avançam.
O andar que sobe as escadas é desses.
Gosto do som destes passos descendo a escada. Afastando-se.
É quando sobem que não os suporto. Aproximando-se.
Virão caminhando para mim, julgando ser possível alcançar-me mas eu não sou alcançável.
Estou longe... distante... afogo-me na vontade de partir e sei que no fundo já parti.
Os passos passam por cima do silêncio.
Do meu silêncio.
Pisam-no.
Esmagam-no.
Silenciam-me a mim.
Afasto-me.
Outra Ana vem em meu auxílio.
Ele aproxima-se, enlaça-a pela cintura e beija-a apaixonadamente.
Pensa que me beija a mim.
Eu assisto.
Hoje ele traz algo diferente nele.
Quero ir-me embora para não ver mais mas ele não está dengoso e mole como é habitual.
Assusta-me deixar a outra Ana só com ele.
Vejo-lhe um fogo no olhar que não tinha visto nunca.
Vejo-lhe as veias do pescoço inchadas.
As mãos parecem garras.
A voz está enrouquecida.
Os óculos estão embaciados do vapor quente que solta da sua respiração arfante.
A boca baba-se escorrendo pelos cantos uma saliva espumosa de cor esbranquiçada.
Parece um cão raivoso.
Repugnante!
Nojento!
O estômago revolvesse. Tenho vontade de vomitar!
Asco!
Asco!
E medo!
Medo pela Ana que lá ficou.
Devo ficar aqui.
Ela veio auxiliar-me, eu permanecerei aqui, olhando por ela.
Evitar o vómito Ana!
Evitar o vómito Ana!
Evitar o vómito Ana!
Repito para mim mesma.
Sento-me no sofá pequeno, em inglês love seat.
Irónico… amor é coisa que nesta casa não existiu nunca mas existe desde o inicio um sofá do amor.
Ele está por cima dela, investindo ritmadamente, penetrando-a com aquela coisa dura e peçonhenta que tem entre as pernas. Sua e guincha como um animal!
Evitar o vómito Ana!
Ela pobre Ana finge gostar, suspira intervaladamente imitando suspiros de prazer.
Anseia o fim. Conheço-a bem. Ela saiu de mim, afinal!
Queres que isto acabe não é Ana?
Está quase!
Hoje será ainda mais rápido do que das outras vezes.
Ele hoje está diferente.
Mais assustador.
Mais animal.
Mais nojento ainda.
O suor dele pinga sobre o belo peito nu da minha Ana.
Evitar o vómito Ana!
Evitar o vómito Ana!
Fala o animal… Porco!
Estou a vir-me querida! Diz ele.
Coitada da Ana!
É bom ter uma amiga assim.
Isto é uma amiga.
Estou a chorar.
Lembrei-me daquela maldita noite.
A noite em que as Anas começaram a aparecer.
Eu precisava de amigas assim.
Que estivessem lá quando eu precisasse.
Não como aquela idiota da Luísa.
Ela não estava lá.
A doce Luisinha tinha arranjado um namorado.
Nessa noite o namorado da Luísa roubou a Luísa de mim.
Quando tudo aconteceu aquela que dizia ser a minha melhor amiga, não estava lá, eu estava só entregue a mim mesma e aos acontecimentos.
Ela, a doce e maternal Luisinha estava ocupada a namorar ou a fazer amor de forma terna e sentida, como é próprio dela, que é uma idiota!
Demasiado ocupada para estar comigo e me proteger do que aconteceu.
Demasiado ocupada para estar comigo no dia do meu aniversário.
Sim, nessa noite era o dia do meu aniversário.
Eu e a odiosa Luisinha festejávamos os nossos aniversários desde que nos conhecíamos, as duas sozinhas, eu, ela e mais ninguém.
O mundo era nosso mas não o queríamos quase nunca e nesses dias em particular queríamo-nos apenas uma à outra.
Tínhamos um ritual só nosso.
Jantávamos sempre só as duas num sítio especial comíamos soberbamente, bebíamos o melhor vinho, falávamos, falávamos, falávamos, horas e horas, perdidas uma na outra e na forte amizade que nos unia e nos afastava do mundo. Quando chegava à altura dos Whiskys era hora de oferecer o presente, também sempre algo especial. Durante todos aqueles anos o presente era entregue junto com um postal, uma carta, uma simples folha, não importava o quê, bastava ser algo onde fosse possível escrever: “Obrigada por teres nascido”.
Nesse ano tudo foi diferente.
Eu escolhi cuidadosamente o restaurante e fiz a reserva, como sempre fazia.
Pus-me bonita para aquele dia como sempre fazia.
Cheguei a horas como sempre fazia.
Sorridente sentei-me, pedi o meu Martini branco seco, acendi o meu cigarro e esperei que a Luísa chegasse.
Ela atrasou-se muito, a reserva era para as 21.30, a Luísa chegou ás 22.05.
Sentou-se deu-me um beijo de parabéns e com notório nervosismo procurou de imediato o empregado para lhe pedir um gin tónico que bebeu quase na totalidade dum trago.
Depois olhou-me e disse: - Ana não tive tempo para o teu presente.
Não me importei, disse-lhe que não fazia mal. Que o importante era estarmos ali as duas, juntas como sempre.
Ela pousou os olhos sobre a mesa sem coragem de me encarar e disse: - Ana não tenho sequer onde escrever a nossa frase.
Voltei a dizer que não fazia mal, que desde que estivéssemos as duas nada afectava a minha felicidade nesse dia.
Ela fez um beicinho que eu adorava e me fazia sempre rir, hoje sei que o beicinho era tão falso como aquela amizade que eu acreditava a prioridade das nossas vidas. Com o falso beicinho colocado na face olhou-me e disse: - Ana, o João vem cá ter daqui por 1 hora.
Senti o coração apertar e as lágrimas subiram a longa escadaria entre o coração e o olhar em segundos apenas. Não sei como fiz mas apenas uma caiu sobre a pedra de gelo que dançava no meu copo, na minha mão.
Ainda assim, disse-lhe que compreendia, que sabia que iria ter de me habituar à presença do João e que embora fosse estranho talvez uma ocasião festiva como o meu aniversário fosse excelente para eu me começar a familiarizar com essa ideia.
Ela olhou-me em silêncio abanando a cabeça. No seu olhar havia pena.
Pena de mim!
Pena por mim!
Cheia dessa malévola pena disse-me: - Ana o João vem cá ter e eu vou sair com ele. Não vamos ficar contigo. Perdoa se te magoo.
Tentei tudo, juro que tentei tudo para evitar!
Mas a lágrimas entraram de rompão nos meus olhos, encheram-nos em instantes e logo desataram a rolar pelo meu ridiculamente bem maquilhado rosto.
Odiei-me por não as ter conseguido conter.
Odiei-a por me fazer aquilo.
Não olhei à volta mas sentia a pena espalhada pelo maldito restaurante e estampada na cara dela.
O João chegou e levou-a.
Ela foi depois de silenciosamente me dar um beijo e me limpar uma das muitas lágrimas em que me deixava afogar.
Não me lembro de ter pago.
Não me lembro de como cheguei ao bar perto de casa onde com propositada deselegância me embebedei festejando o meu primeiro de muitos aniversários na doce e fiel companhia da solidão e da tristeza.
Não me lembro quando desejei a minha cama com tanta força que esse desejo guiou os meus passos até casa.
Outros desejos se misturaram com os meus sem que eu tivesse dado por isso.
Não escutei os passos que seguiram o meu passo.
Meti a chave na porta da minha, pequena, mas tão minha, casa e quando a minha mão empurrou a porta para entrar fui também eu empurrada para o interior de uma sala que eu sabia ser a minha sala.
Da sala fui arrastada para o quarto e no quarto fui arrastada para o inferno.
Não sei como ele era.
Não recordo a dor no corpo. A dor na alma era incomparavelmente mais forte. Nenhuma dor física jamais seria capaz de superar a dor que me tomou conta da alma.
Cada rasgão no corpo, rasgava a alma, invadia-a, violava-a da forma mais brutalmente inimaginável mesmo pela mais fértil das imaginações. E a minha era-o.
De tudo recordo apenas com clareza uma voz. Aquele monstro doente penetrava-me selvaticamente enquanto com doçura me chamava querida.
A minha alma contorcia-se de dor num mar de vómito.
A minha voz gritava sem som, no mais puro silêncio.
O meu corpo lutava sem luta, na mais perfeita inércia.
A minha cabeça salvou-me.
Ajudou os meus olhos a verem aquele sítio diferente do que era antes.
Enquanto “aquilo” durou aquele sítio foi outro sítio para mim.
A minha cabeça sabia que eu tinha de continuar a lá viver mais uns dias… só o poderia fazer se não o recordasse como o local onde “aquilo” tinha acontecido, onde o monstro doente me tinha transformado a mim num monstro mais monstruoso ainda.
Ali, naquele local inventado, apareceu a primeira Ana, e depois dela muitas vieram ajudar.
A minha cabeça salvou-me do que o mostro doente e a minha doce amiga Luisinha me fizeram.
Ao monstro doente perdoei logo, era doente coitado!
A ela nunca.
Odeio-a tanto como a adorei antes.
Odeio-a tão profundamente como a profunda dor que me rasgou a alma entre palavras doces, sem dó nem piedade, naquela noite, naquela casa, naquela cama que eu sei era a minha.
Não atendi telefones, não abri a porta, não dormi, não falei, não comi, não sei durante quanto tempo.
Quando me consegui mexer, deitei o telefone fora e comprei um novo.
Empacotei as minhas coisas e mudei-me para a primeira casa que apareceu.
Desapareci só.
Eu e as Anas.
A Luísa morreu naquela noite, na minha cama, enquanto um monstro se satisfazia sobre mim.
Odeio-a.
Odeio-a tanto e sempre como a adorarei sempre tanto.
Luísa és má, sempre foste e eu não vi.
Fizeste-me um monstro quando naquela noite me deixaste só.
Um monstro de tristeza e solidão foi o que fizeste de mim Luísa?
Agora voltaste e sinto-te perto de novo.
Quero-te morta e sinto-te viva.
Sinto-te viva no mundo e dentro de mim.
És má Luísa… mas mais má é a minha vida sem ti.
Choro-te.
Enquanto te choro vejo as lágrimas escondidas nos olhos da outra Ana enquanto o animal com que casei se baba enroscado nela.
Coitada dela e de mim.
As duas mais mortas que tu Luísa, que te sinto viva.
Vontade de partir. De viver de novo. Vontade de te ver.
Vontade de partir para ti. Vontade de partir contigo.
Odeio-te Luísa.
(Continua)
Isabel
E medo!
Medo pela Ana que lá ficou.
Devo ficar aqui.
Ela veio auxiliar-me, eu permanecerei aqui, olhando por ela.
Evitar o vómito Ana!
Evitar o vómito Ana!
Evitar o vómito Ana!
Repito para mim mesma.
Sento-me no sofá pequeno, em inglês love seat.
Irónico… amor é coisa que nesta casa não existiu nunca mas existe desde o inicio um sofá do amor.
Ele está por cima dela, investindo ritmadamente, penetrando-a com aquela coisa dura e peçonhenta que tem entre as pernas. Sua e guincha como um animal!
Evitar o vómito Ana!
Ela pobre Ana finge gostar, suspira intervaladamente imitando suspiros de prazer.
Anseia o fim. Conheço-a bem. Ela saiu de mim, afinal!
Queres que isto acabe não é Ana?
Está quase!
Hoje será ainda mais rápido do que das outras vezes.
Ele hoje está diferente.
Mais assustador.
Mais animal.
Mais nojento ainda.
O suor dele pinga sobre o belo peito nu da minha Ana.
Evitar o vómito Ana!
Evitar o vómito Ana!
Fala o animal… Porco!
Estou a vir-me querida! Diz ele.
Coitada da Ana!
É bom ter uma amiga assim.
Isto é uma amiga.
Estou a chorar.
Lembrei-me daquela maldita noite.
A noite em que as Anas começaram a aparecer.
Eu precisava de amigas assim.
Que estivessem lá quando eu precisasse.
Não como aquela idiota da Luísa.
Ela não estava lá.
A doce Luisinha tinha arranjado um namorado.
Nessa noite o namorado da Luísa roubou a Luísa de mim.
Quando tudo aconteceu aquela que dizia ser a minha melhor amiga, não estava lá, eu estava só entregue a mim mesma e aos acontecimentos.
Ela, a doce e maternal Luisinha estava ocupada a namorar ou a fazer amor de forma terna e sentida, como é próprio dela, que é uma idiota!
Demasiado ocupada para estar comigo e me proteger do que aconteceu.
Demasiado ocupada para estar comigo no dia do meu aniversário.
Sim, nessa noite era o dia do meu aniversário.
Eu e a odiosa Luisinha festejávamos os nossos aniversários desde que nos conhecíamos, as duas sozinhas, eu, ela e mais ninguém.
O mundo era nosso mas não o queríamos quase nunca e nesses dias em particular queríamo-nos apenas uma à outra.
Tínhamos um ritual só nosso.
Jantávamos sempre só as duas num sítio especial comíamos soberbamente, bebíamos o melhor vinho, falávamos, falávamos, falávamos, horas e horas, perdidas uma na outra e na forte amizade que nos unia e nos afastava do mundo. Quando chegava à altura dos Whiskys era hora de oferecer o presente, também sempre algo especial. Durante todos aqueles anos o presente era entregue junto com um postal, uma carta, uma simples folha, não importava o quê, bastava ser algo onde fosse possível escrever: “Obrigada por teres nascido”.
Nesse ano tudo foi diferente.
Eu escolhi cuidadosamente o restaurante e fiz a reserva, como sempre fazia.
Pus-me bonita para aquele dia como sempre fazia.
Cheguei a horas como sempre fazia.
Sorridente sentei-me, pedi o meu Martini branco seco, acendi o meu cigarro e esperei que a Luísa chegasse.
Ela atrasou-se muito, a reserva era para as 21.30, a Luísa chegou ás 22.05.
Sentou-se deu-me um beijo de parabéns e com notório nervosismo procurou de imediato o empregado para lhe pedir um gin tónico que bebeu quase na totalidade dum trago.
Depois olhou-me e disse: - Ana não tive tempo para o teu presente.
Não me importei, disse-lhe que não fazia mal. Que o importante era estarmos ali as duas, juntas como sempre.
Ela pousou os olhos sobre a mesa sem coragem de me encarar e disse: - Ana não tenho sequer onde escrever a nossa frase.
Voltei a dizer que não fazia mal, que desde que estivéssemos as duas nada afectava a minha felicidade nesse dia.
Ela fez um beicinho que eu adorava e me fazia sempre rir, hoje sei que o beicinho era tão falso como aquela amizade que eu acreditava a prioridade das nossas vidas. Com o falso beicinho colocado na face olhou-me e disse: - Ana, o João vem cá ter daqui por 1 hora.
Senti o coração apertar e as lágrimas subiram a longa escadaria entre o coração e o olhar em segundos apenas. Não sei como fiz mas apenas uma caiu sobre a pedra de gelo que dançava no meu copo, na minha mão.
Ainda assim, disse-lhe que compreendia, que sabia que iria ter de me habituar à presença do João e que embora fosse estranho talvez uma ocasião festiva como o meu aniversário fosse excelente para eu me começar a familiarizar com essa ideia.
Ela olhou-me em silêncio abanando a cabeça. No seu olhar havia pena.
Pena de mim!
Pena por mim!
Cheia dessa malévola pena disse-me: - Ana o João vem cá ter e eu vou sair com ele. Não vamos ficar contigo. Perdoa se te magoo.
Tentei tudo, juro que tentei tudo para evitar!
Mas a lágrimas entraram de rompão nos meus olhos, encheram-nos em instantes e logo desataram a rolar pelo meu ridiculamente bem maquilhado rosto.
Odiei-me por não as ter conseguido conter.
Odiei-a por me fazer aquilo.
Não olhei à volta mas sentia a pena espalhada pelo maldito restaurante e estampada na cara dela.
O João chegou e levou-a.
Ela foi depois de silenciosamente me dar um beijo e me limpar uma das muitas lágrimas em que me deixava afogar.
Não me lembro de ter pago.
Não me lembro de como cheguei ao bar perto de casa onde com propositada deselegância me embebedei festejando o meu primeiro de muitos aniversários na doce e fiel companhia da solidão e da tristeza.
Não me lembro quando desejei a minha cama com tanta força que esse desejo guiou os meus passos até casa.
Outros desejos se misturaram com os meus sem que eu tivesse dado por isso.
Não escutei os passos que seguiram o meu passo.
Meti a chave na porta da minha, pequena, mas tão minha, casa e quando a minha mão empurrou a porta para entrar fui também eu empurrada para o interior de uma sala que eu sabia ser a minha sala.
Da sala fui arrastada para o quarto e no quarto fui arrastada para o inferno.
Não sei como ele era.
Não recordo a dor no corpo. A dor na alma era incomparavelmente mais forte. Nenhuma dor física jamais seria capaz de superar a dor que me tomou conta da alma.
Cada rasgão no corpo, rasgava a alma, invadia-a, violava-a da forma mais brutalmente inimaginável mesmo pela mais fértil das imaginações. E a minha era-o.
De tudo recordo apenas com clareza uma voz. Aquele monstro doente penetrava-me selvaticamente enquanto com doçura me chamava querida.
A minha alma contorcia-se de dor num mar de vómito.
A minha voz gritava sem som, no mais puro silêncio.
O meu corpo lutava sem luta, na mais perfeita inércia.
A minha cabeça salvou-me.
Ajudou os meus olhos a verem aquele sítio diferente do que era antes.
Enquanto “aquilo” durou aquele sítio foi outro sítio para mim.
A minha cabeça sabia que eu tinha de continuar a lá viver mais uns dias… só o poderia fazer se não o recordasse como o local onde “aquilo” tinha acontecido, onde o monstro doente me tinha transformado a mim num monstro mais monstruoso ainda.
Ali, naquele local inventado, apareceu a primeira Ana, e depois dela muitas vieram ajudar.
A minha cabeça salvou-me do que o mostro doente e a minha doce amiga Luisinha me fizeram.
Ao monstro doente perdoei logo, era doente coitado!
A ela nunca.
Odeio-a tanto como a adorei antes.
Odeio-a tão profundamente como a profunda dor que me rasgou a alma entre palavras doces, sem dó nem piedade, naquela noite, naquela casa, naquela cama que eu sei era a minha.
Não atendi telefones, não abri a porta, não dormi, não falei, não comi, não sei durante quanto tempo.
Quando me consegui mexer, deitei o telefone fora e comprei um novo.
Empacotei as minhas coisas e mudei-me para a primeira casa que apareceu.
Desapareci só.
Eu e as Anas.
A Luísa morreu naquela noite, na minha cama, enquanto um monstro se satisfazia sobre mim.
Odeio-a.
Odeio-a tanto e sempre como a adorarei sempre tanto.
Luísa és má, sempre foste e eu não vi.
Fizeste-me um monstro quando naquela noite me deixaste só.
Um monstro de tristeza e solidão foi o que fizeste de mim Luísa?
Agora voltaste e sinto-te perto de novo.
Quero-te morta e sinto-te viva.
Sinto-te viva no mundo e dentro de mim.
És má Luísa… mas mais má é a minha vida sem ti.
Choro-te.
Enquanto te choro vejo as lágrimas escondidas nos olhos da outra Ana enquanto o animal com que casei se baba enroscado nela.
Coitada dela e de mim.
As duas mais mortas que tu Luísa, que te sinto viva.
Vontade de partir. De viver de novo. Vontade de te ver.
Vontade de partir para ti. Vontade de partir contigo.
Odeio-te Luísa.
(Continua)
Isabel
Fotografia de Akkad
66 Comments:
Gostei de te ler! As tuas palavras têm o dom de nos levar até à tua realidade de uma forma espectacular.
Percebo bem esse desejo!...
Dark kiss
Muito bom teu texto,existe tantos andares que nem tem com explicar vai de cada um como eles olham esses andares.
Um abraço.
Brutal
Incrivel
Esta dicotomia das duas ana's
Este relacionamento com a Luisa, este texto, esta narrativa...muito bom mesmo.
Sobre os rancores e em suma, deixa-te contar uma pequena história.
Era uma vez dois amigos de muitos anos que se zangaram ao ponto do A bater no B. Nesse dia, o B escreveu na areia, "odeio-te A".
Passaram-se tempos e noutro dia, o B nadava na praia quando lhe deu uma caimbra e ia morrendo afogado se não fosse o B a salva-lo. Nesse dia, o A escreveu numa pedra, "amo-te B".
Moral da historia, o que realmente nos toca e interessa, nós escrevemos onde mais perdure. O resto, escrevemos para que se apague um dia...
Bjos daqui
Eugénio
Desculpa, foi o A que salvou o B, e este escreveu na pedra, "amo-te A"
Assim é que é...
Isto de não por nomes, é o que dá
;-)
Bjos daqui
Eugénio
Vim deixar-te um beijinho...
Beijinhos
BFS
Sempre tão bom, voltar aqui...
Sempre palavras tão sábias.
Um beijinho :)
Todos temos os nossos ódios de estimação. As tuas histórias tocam-nos de tanta realidade que espelham!
Bjs e um óptimo fim de semana!
Bom! pouco-muito-pouco tenho para dizer
A não ser EXCELENTE! o que ainda é pouco-muito-pouco
Beijo com carinho
BomFsemana
Fiquei presa da primeira à última palavra. Um texto especatcular e muitíssimo bem escrito, com aquele ritmo que sobe em crecendum.
Um beijo para ti
...precisaves é escrever um livro de contos. Tens muito talento para a escrita!
Parabéns, bom fim de semana!
Li e reli.Senti dor, repulsa e saudade.
Amei.
bjos e bfs
Passo para deixar uma luz serena
Bom fim de semana
Lindo texto!!! Passei para deixar-te um beijinho e desejar-te um excelente final de semana...
Podem as palavras ter direito a tamanha crueldade? Sim. Estas palavras neste compasso intenso e impulsivo de quem sente e se sente. Estas palavras que nos transportam para dentro de nós; dos outros também. Estas palavras que nos fixam e perturbam. Estas palavras que escolhemos. Porque nunca as escolhemos todas. Só algumas. E é por isso que os textos nunca são iguais.
Gostei muito desta enorme força.
Olá Isabel
É lindo!
Acho que toda a gente gostou e o definiu como muito bom.
Na verdade escreves muito bem, e nem só, há que dar uma palavra à criatividade. excelente.
Que tenhas um bom fim-de-semana
Beijinhos
Não deveria ter isto hoje..
..
Mas, como sempre ensurdecedor..
Eu e outro eu... e eu e outro...
Projecções e visões... vivências, clivagens e negações...
na continuidade...
Bjo
Isabel!!!
Desculpa só ter vindo agora!!!
O teu texto devorou-me, amei!!!
Continua com toda essa força!!
Beijinhos, linda!!!
:))
Deixa-me chamar-lhe "dança das palavras".
Beijo-te
Excelente escrito,hacia tiempo que no leia algo tan bien escrito.
Perdona por no comentar antes, estaba de viaje y este duró más de la cuenta.
Me pondré al dia con cada uno de tus post.
Te abrazo
Alexis Coald
bjinho
É bom ver o inferno protegido por um vidro...
...sem lembrar o quão frágil é um vidro.
Bjinho
PS- eu sei que esta foto do inferno está no post abaixo :)) foi de propósito.Você entende!
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tenho a cabeça feita num oito... Alice,
desculpa
Isabel
Maria,
olha .. qualquer coisa ...
ainda bem que posssso comentar aqui
Minha alma em estado líquido: onde estás? Neve, sonho? E quando não ficam, é porque não prestam. Gosto da tua escrita tão sentida. Bjinho
Passei para dizer que gosto muito de ti!
bjitos
Olá,
Depois de ler centenas e centenas de livros (bons livros) e de ser um grande apreciador de boa escrita digo-te uma coisa: AO NÍVEL DOS MELHORES..
Encontro aqui um bocado de Lobo Antunes.. e só isso é enorme, enorme...
Até breve
SE DEUS QUISER
Feliz Dia dos Namorados.
Namora muito...
;-)
Beijinhos
Acho que já te disse...Criaste uma personagem espectacular...E que bem que tu a dominas. Tanto de nós nas "Anas". Não é novidade que escreves bem, mas com a continuação e pelo facto de ligares os textos parece-me que tudo isto merecia mais qualquer coisa...Uma ligação material, compilação...Para ser honesto, o visitar-te e ler-te é um desafio que também me faz escrever.
Para ti um abraço amigo.
As nossas ausências nunca o seram realmente...Estamos à distância de um clique...No Blog
"Serão" em vez de "seram"...Fica o abraço amigo.
GOstei!
jnhs
Pouco tenho a acrescentar ao que já disseram aqui...muito bom, muito sofrido e sentido, real, cruel, tudo isso nos consegues fazer sentir com a tua escrita, adorei.
Beijos para ti.
Cheguei... li-te .... e adorei.
Nada mais posso acrescentar ao que aqui já foi escrito.
.... Voltarei :)
Beijinhos
«Os passos passam por cima do silêncio.»
«Outra Ana vem em meu auxílio.»
«O meu corpo lutava sem luta, na mais perfeita inércia.»
Destaquei estas expressões que me parecem soberbas num texto muito, mas muito forte! E muito bem escrito!
Beijinhos!!!!!
Quando se entra no labirinto psicológico em que nos enredas, torna-se difícil sair.
É como se nós próprios, leitores, fizessemos parte da teia... Oh Isabel, não tenho palavras. Quanta imaginação e verdade ao mesmo tempo se conjugam para produzir os admiráveis textos com que nos seduzes. O livro com urgência!
Quero ler e reler tudo isto em papel
Um beijo grande
Desapareceste..estou triste..
Continua quando? Vá lá, não sejas como eu.
Olá Isabel!
Passei para dar uma vista de olhos, confesso que não está nos meus hábitos seguir livros em écran, não consigo o nível de concentração necessário e desejável para disfrutar, porém, fico contente com o teu empenho neste teu romance literário on-line!
Até sempre
Beijinhos de até sempre
Vim reler.
Outra vez.
E fiquei sem fôlego... mesmo que não queira, às vezes tenho que falar, aqui!
Um beijo
Passo desejando um fim de semana cheio de luz.
Beijos de luz serena
Voltei, sentei-me e reli. talvez esteja quase louco, mas diviso mensagens subliminares nas entrelinhas. De que gosto. Beijo
Vim deixar-te um beijinho...
Brincaste ao carnaval?
Como não há nada de novo, deixo um beijo...
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eu é que arrepio???????????
puxa....!
e "isto?"
________________ a tua sorte é que eu sou de poucas pouquíssimas palavras....
Isabel....
que bom!
que viagem....!
beijo-te.
Este comentário foi removido pelo autor.
Olá Isabel!
Fiquei feliz por me teres visitado. É bom saber que andas por aí... sinto-te a falta.
Bjs.
passei aqui só para deixar um básico...
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E desejar que vc tenha um bom noite !!
Isabel,
agora estou num Fundamentalidades 2 porque o google desactivou-me a conta dos outros blogues, não sei porquê!!!!
Beijinhos. E para quando novo texto?
Há sim... andamentos dúbios e afins.
Adorei ler esta narrativa, nem mais nem menos que as outras, mas esta teve o condão de ter consciência de um particular misto de sensações.
Se me falasses tudo isto nos olhos... dar-te-ia toda a minha atenção envolto de todo o silêncio mistico do qual só eu sou capaz e aposto que nem estranharias o meu sorriso abstracto aqui e alí.
Hoje, relembraste-me que o que importa não é se se gosta daquilo que se lê ou que se vê... importa sim ver e ouvir.
Obrigado
Isabel;
A tua escrita revela uma marca muito própria que parece já teres conseguido atingir. Adorei o cuidado com que expões os mais pequenos pormenores. Parabéns.
Mr. Lynch
PS: Só conseguimos odiar quem amamos...
Não me canso de ler as tuas palavras, mesmo não deixando comentários quando aqui passo.Virei sempre.
Quero convidar-te para uma homenagem que estou a fazer no meu Paúl dos Patudos, aparece por lá.
bjos
bom fim de semana
Ana Paula
Vim aqui por causa de um comentário teu, algures.
Dizias, a dado passo:
Eu não uso as palavras para escrever sobre mim.
Eu uso-me a mim nas palavras com que escrevo.
Quis ver para crer... e vi que é mesmo verdade. Do que li (3 posts) é mesmo assim.
Parabéns pela excelente qualidade literária do que escreves. Rara nos blogues.
Beijinhos.
a relação amor ódio sempre foi uma coisa clara para mim..
as amizades também.. sempre foram muito importantes. pilares. amor.
o término de uma relação, ou uma mudança não desejada, leva-nos a sentir a perda com uma dor indescritível, só aceite pelo tanto que se teve e que se tem de deixar ir...
inventam-se novos eus.. nos recomeços.. a memória mostra-nos eus mais felizes.. sítios a que gostaríamos de voltar.. momentos que gostavamos de perpetuar..
não é fácil mas é assim a vida.. nada de nosso.. valha-nos a vivência.. e os momentos dignos de recordar
gostei de te ler.. como sempre
Da primeira vez que visitei este blogue li só na diagonal: os textos eram longos e os meus olhos já não se adaptam muito bem ao branco sobre preto.
Desta vez estava a ler de novo na diagonal quando alguma coisa me disse: Espera! Volta ao princípio! Olha que isto é capaz de ser bom!
Voltei ao princípio, comecei a ler com atenção, e foi o deslumbramento: não era apenas bom, era um texto inspirado, muito bem trabalhado e que espero ver um dia publicado em livro.
Tive logo que fazer este comentário. A seguir vou ler os outros textos, todos e por ordem. Obrigado, Isabel.
Gostei de por cá passar,mais uma vez.
Obrigada pela sua passagem por lá.
Obrigada por tudo.
Bom fim de semana.
Beijos de Luz serena
A tua escrita vira-nos do avesso. Há em ti uma tal intensidade... **
excelente o texto que acabei de ler
voltarei
jocas maradas
Vou ser a 60ª a procurar-te Isabelinda. Onde?
Bj
Nesta noite cai do céu a magia em gotas de diamante...cada gota aprisiona um querer, um sortilégio de luz...
Doce beijo
As tuas histórias são sempre lindíssimas e verídicas, coisas que podem acontecer a qualquer um de nós!
Beijinhos
Concâvo e convexo, espelhos, sombras, palavras e silêncios...
Curioso: se a teia é a sobrevivência da aranha, o que será a mesma teia para a mosca?...
Vim rever, reler..!
Até breve
SE DEUS QUISER
Bjinho.cheio de saudade..
Aprendi a amar pela madrugada
no frio denso, no frio denso
com os dentes fechados a morder o lenço
sem poder calcar a porta de entrada
aprendi a matar bem mais do que penso
aprendi a matar bem mais do que penso.
Aprendi a amar com as duas mãos
de amor intenso, de amor intenso
uma para a ferida outra para o penso
a molhar os dedos nos líquidos sãos
aprendi a matar bem mais do que penso
aprendi a matar bem mais do que penso.
Aprendi a amar junto dos armários
queimando incenso, queimando incenso
repetindo mais palavras por extenso
aprendi a amar por motivos vários
aprendi a matar bem mais do que penso
aprendi a matar bem mais do que penso.
Aprendi a amar derramando vinho
no mar imenso, no mar imenso
a ver se não perdia o que sei que não venço
deixando corpos caídos no caminho
aprendi a matar bem mais do que penso
aprendi a matar bem mais do que penso.
Sérgio Godinho
AMOR TEM COR?
ME DIGA, POR FAVOR!
um abraço e um sorriso!
Isabel isabel isabel
........
........
Ainda não li tudo... sabes, que tenho que estar desprendida para 'te' ler.. sentir!
Mas, o pouco que li já deu para sentir tanto.. tanto!
Se soubesses o quanto ás vezes é dificil sentir as tuas linhas...
Abraço muito apertado
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