Começar de novo
Luísa, 5 dias depois (excerto)
Ao 5ª dia ela acordou.
2 dias mais do que cristo levou para ressuscitar.
Uma força inversa à que durante esses 5 dias a tinha suavemente empurrado para longe, repentinamente devolveu-a a este mundo.
Como se durante esses dias a tivesse mastigado, saboreado, deixado os sabores amadurecerem na língua sem engolir e num segundo se apercebesse que não a queria, que o sabor não lhe agradava e sem delicadeza ou etiqueta, rudemente a cuspisse de volta à vida.
A morte não gostou dela.
Soube-lhe mal.
Tinha um travo desagradável, era débil, demasiado leve, demasiado jovem.
A morte apreciava as pessoas como se apreciasse um bom vinho.
Na infância do vinho é criminoso bebe-lo.
Pela mesma razão a morte não apreciava o sabor crianças, achava criminoso engoli-las tão cedo. Só quando estava esfomeada.
Outras vezes era acidental.
As eternas batalhas entre ela e a irmã vida, uma vez por outra empurravam-lhe uma criança acidentalmente goela abaixo.
A morte não gostava.
Nessas alturas costumava gritar com a irmã e dizer que já tinham ido longe de mais.
Vida concordava.
Ambas choravam quando isto acontecia.
A morte também não apreciava os muito jovens, nem nos vinhos nem nas pessoas.
Vida também não gostava de a ver engolir os mais jovens que eram quem habitualmente a enchiam de alegria, ânimo e energia.
Ultimamente acontecia com alguma frequência. Nem ela nem a irmã percebiam bem porque. Sem saberem como um jovem de repente abandonava a vida e ia parar directamente à boca da morte.
- Deve ser este mundo que está enlouquecido. Costumavam comentar as duas.
-Dantes isto estava bem dividido, tu tomavas conta deles até serem velhos e depois entregavas-mos a mim. Dizia a morte.
- Assim é que estava bem. Assim é que estava como é natural. E eu tinha-os como gosto já envelhecidos como um bom vinho. Tal e qual como os vinhos os melhores também são os que tiveram uma vida feliz.
- Hum, que gostinho bom que esses tem. Continuava a morte lambendo os beiços.
Luísa soubera-lhe mal, não era assim que gostava delas.
Sabia a vinho pouco e mal amadurecido.
Sabia a vinho quebrado, de pouca vida e muita dessa já pouca, muito infeliz.
Nã, não gosto disto. Pensou a morte.
Nesse dia, o 5º, estava de gosto requintado e não estava disposta a fazer cedências.
Queria algo completo, harmonioso, elegante, redondo, bem maturado.
Por isso sem hesitar cuspiu-a. Devolveu-a à vida.
A vida, que não tinha gostado de a ver partir, abriu os braços para a acolher de volta.
Luísa agradeceu.
Também não tinha gostado dos dias passados na boca da morte.
Não lhe agradou aquele bafo quente e malcheiroso.
A morte tinha a infelicidade de ter mau hálito.
Talvez fosse por muitas vezes se dedicar a esta degustação de pessoas antes de decidir se as engolia ou as entregava de volta à sua querida irmã vida.
Todo este tempo com pessoas moribundas na boca era certamente a causa daquele bafo fétido.
Quem diria que com tão mau hálito a morte era senhora de gostos requintados.
Luísa sentia um inesperado prazer em se sentir viva.
Apesar de pouco recordar tinha a certeza de que o lugar onde estivera lhe tinha sido terrivelmente desagradável e que aqueles 5 dias lá passados a iriam marcar para sempre. Aquela língua fedorenta feita sala de espera onde os mortos vivos aguardam a decisão da morte era o pior sitio onde já tinha estado.
Se ao menos tivesse sido engolida de imediato.
Mas todo aquele processo de degustação tinha sido uma verdadeira tormenta.
Sentiu-se grata por ser cuspida. E não esperava.
Estava convencida que queria morrer.
Estava convencida que queria encontrar a morte.
Estava convencida que a morte seria sua companheira e que com agrado lhe daria a mão e finalmente poderia descansar.
Mas estava errada.
Não era a sua hora.
Surpreendentemente sentia-se grata à morte por a ter recusado.
Mais grata ainda à vida, por apesar da traição, a ter recebido de volta.
Sem perguntas.
Sem condições.
A vida estendeu-lhe a mão e disse-lhe baixinho: acorda, estás de volta.
Sentiu estas palavras como um sopro na alma empurrando-a em sentido oposto.
Deixou-se vir montada nesse sopro, como um guerrilheiro montado no seu cavalo regressando a casa depois de uma dura batalha.
Regressava ao conforto desconfortável de estar viva.
De novo a vida falou – Acorda agora, Luísa!
Sentiu a mão morna da vida sob a sua mão gelada e obedeceu.
Acordou.
Acordou de repente ao segundo apelo da vida.
Mas o verdadeiro despertar esse foi lento, muito lento.
Vinha de longe.
Passava por algo semelhante á diferença de fuso horário.
Um estranho cansaço, como se as horas estivessem trocadas.
Teve um primeiro pensamento.
“Será que avisaram no emprego que eu não podia ir?”
Logo de seguida ficou estupefacta com o que pensara.
Como era possível ter decidido morrer.
Matar-se.
Voltar miraculosamente à vida.
E ter como primeiro pensamento algo de tão comezinho.
Como era possível?
Passara pela mais difícil das decisões.
Fizera a mais estranha viagem.
Acabara de regressar da mais transcendente de todas as suas experiências e o seu primeiro pensamento era algo tão banal, tal vulgar, tão trivial.
Luísa ainda não sabia que o resto vinha depois.
Agora que estava viva tudo se tinha voltado a passar da forma como normalmente se passa entre nós os vivos.
Por muito que nos custe admiti-lo antes de sermos elevados todos somos primários.
Antes das análises filosóficas, psicológicas ou transcendentais, começamos por pensar no mais básico, comer, beber, dormir, ela pensara em trabalhar.
Pensara naquilo que lhe garantia o sustento.
Naquilo que garantiria a sua sobrevivência depois de estar grata por estar de regresso à vida.
Ela estava apenas a ser o que era. Um ser humano igual aos outros.
O resto viria depois.
Na enfermaria tinham dado pelo seu despertar.
A paciente da cama 22 sairá do coma.
A azáfama do cumprimento das tarefas habituais nestes casos tivera início.
Visto de fora é algo que se assemelha a uma corrida depois de dado o sinal de partida.
Uma corrida de pessoal hospitalar já com todo o procedimento mecanizado.
Embora a visão ainda não fosse nítida conseguiu distinguir uma enfermeira novinha de olhos postos nela. Viu naquele olhar um misto de curiosidade com emoção.
Aproveitou.
- Enfermeira. Enfermeira por favor. Chamou.
- Não fale agora. Descanse! Disse-lhe a enfermeira chamada Conceição, como se podia ver na pregadeira com a identificação no bolso da bata branca.
- Quero saber se avisaram o meu emprego. Perguntou Luísa.
- Não creio menina. Sei que esteve cá uma amiga sua. Penso ter sido o único número que atendeu o telefone quando se tentou contactar a sua família.
- Não tenho família. Disse Luísa com secura.
-Mas esteve cá uma senhora 2 vezes, uma amiga. E falou muito consigo, reparei que estava a recordar coisas do passado para ver se ajudava a menina a acordar. Insistiu a enfermeira.
- Sabe quem era? O nome? Perguntou com estranheza.
-De cor não, mas vou ver. Sei que era escritora porque me disse.
Luísa estremeceu.
- Vá rápido ver o nome por favor. Pediu.
A enfermeira novinha saiu correndo e voltou num ápice.
- O nome dela era Ana. Não deixou apelido.
Ana.
Ana.
Não precisava apelido.
Ana, a sua única amiga.
Perdera-lhe o rasto.
A saudade permanecera.
Ana.
A Ana estivera ali junto dela, recordando o passado.
Sorriu.
Ana só tu!
Ana, minha amiga doida foi preciso morrer para te conseguir voltar a encontrar.
(Continua)
Isabel
Rosina Vilella