Esta história contou-me uma gata já velhota com quem costumo ter longas conversas:
Andava um grande e fortalhaço gato vadio, vadiando por aí, nas suas andanças de gato sem dono, quando ao saltar para o varandim de uma janela deu de caras, que é como quem diz, deu de focinho com bico, com um pequeno e frágil passarinho dentro de uma gaiola.
Todos os animais reagem por instinto mas este gatarrão por se tratar de um gato vadio de nascença tinha o instinto natural em estado puro. O seu instinto dizia-lhe que tinha muita fome que aquele passarito apesar da aparência frágil seria suficiente para lhe acalmar a dor no estômago pelo menos por mais um dia.
Deu duas voltas à gaiola com passo lento de felino.
Mirou o pássaro com ar guloso enquanto lambia os beiços.
Astuto bastou-lhe mais uma volta à gaiola para descobrir a porta.
Parado em frente à entrada da gaiola olhou para o passarito e o seu estômago roncou ruidosamente fazendo o gato pensar que tinha de descobrir rapidamente uma maneira de abrir aquela porta para devorar o periquito azul e assim por fim à terrível sensação de fome.
Dentro da gaiola o passarinho tinha petrificado de pavor. Parecia uma estátua sem vida, Totalmente estático em cima do poleiro. Apenas um movimento era visível, as penitas azuis claras do seu peito agitava-se para cima e para baixo deixando adivinhar a força com que batia o seu pequeno coração.
O gato, por ser gato, não prestou a mínima atenção ao medo do pobre passarito.
A sua atenção estava centrada em matar a fome e acabara de encontrar alimento, isso era o que realmente lhe importava.
Vou conseguir abrir esta porta e é já!Pensou confiante.
Ou eu não me chame Minhanhinhau, se não abro esta porta num piscar de olhos!
Assim pensou melhor o fez, levantou a sua grande pata e deitou a gaiola ao chão.
Tomado pelo pânico o passarito desatou a esvoaçar como um louco batendo de um lado para o outro contra as grades da gaiola.
O gato que até era um gato já vivido nunca tinha visto nada assim.
Olhou o passarito com ar incrédulo e perguntou-lhe:
Olha lá o bicharoco das penas, que parvoíce é essa que estás a fazer?
O pássaro não respondeu e continuou pumba, catra pumba contra as paredes da gaiola mostrando-se cada vez mais agitado.
Miau! Berrou o gato:
És surdo, ou quê ó pitéuzinho bom?
Que raio de coisa é essa que estás a fazer, praí a bater feito tonto com a cabeça nas grades?
Responde ó ave rara!
Se não respondes imediatamente como-te já.
Ouviste?
Olha que é já mesmo!
Responde imediatamente. Disse o gato ameaçador.
Com medo de ser de imediato comido o passarinho lá voltou a pousar no poleiro e tremendo como varas verdes lá soltou um piu muito sumidito do pequeno bico amarelo:
Piu, piu. Tenho medo! Tenho muito medo que o Sr. Gato me coma.
Olha lá para mim. Disse o gatarrão enchendo o peito de ar.
Olha-me bem, meu minorca!
Então tu achas que eu tenho focinho de parvo ou quê?
Quer dizer, tens medo que eu te coma e a tua solução é partires-te tu todo contra as grades da tua casa. E estás à espera que eu acredite nisso?
Piu, piu, mas é verdade. Respondeu o passarinho com as penas caídas, a cabecita para baixo e o ar mais honesto, amedrontado e infeliz do mundo.
É pá, é pá, prontos, já vi tudo, és um medricas, um bichinho da dona e perdes completamente a cabeça quando algo te assusta, não é o meu pirralho azulado?
Hehehehe! Ria o gato.
Hehehehe! Tanto riu que acabou rebolando no chão com as patas agarradas à barriga que já lhe doía de tanto se rir.
És um daqueles tótos que conta com a dona para tudo e não te sabes safar de nada sozinho não é?
Aposto que já nasceste nesse espaçozito, todo bonitinho mas minúsculo não? Perguntou.
Já, já nasci aqui, não conheço mais nada, nem nunca sai desta casa. Disse o pássaro envergonhado.
Olha lá ó tigelinha de alpista e que nome tens tu? Perguntou o gato.
O meu nome é Azulinho. Respondeu o periquito.
O teu nome é o quê? Miou o gato com os olhos muito abertos de espanto.
Azulinho!
Azulinho!
Azulinho! Repetiu.
Ai, desgraçado!
Ai, coitadito!
É pá com um nome desses só podias mesmo ser um passarito todo bétucho.
Hehehehe! Deixa-me rir antes que me esqueça. Gargalhava o gato engasgando-se de tanto rir.
Azulinho!
Heheheheh!
Olha lá ó azulinho, vê lá se te acalmas, qu’é para ver se conseguimos ter aqui uma converseta, ok? Disse o gato.
Respiras fundo e tal, essas coisas que se fazem para um gajo se acalmar está bem? Disse o gato tentando ser atencioso.
Eu estou a tentar acalmar-me, juro, mas promete que não me comes, por favor. Promete que não me comes, prometes? Pediu o passarito.
Não prometo nada, népia, neribi, era só que faltava.
Sou gato e o natural é comer-te.
Até já o devia ter feito em vez de estar para aqui a tagarelar feito gata com um passareco de meia tigela, mimado e artolas.
Nem me estou a reconheceu, ouviste ó patareco.Mas estás-me a dar pena, tás a ver?
É estranho, mas já nem apetitoso me estas a parecer. Miou o gato zangado consigo mesmo.
Ouves o meu estômago a roncar? Perguntou.
Ouço sim, coitado de ti, tenho muita pena. Respondeu o passarinho.
Pois este barulho é fome! Informou o gato.
Coisa que tu minha coisita mimada nem deves saber o que é.
Sabes quando foi a minha última refeição?
Eu digo-te. Foi ontem de manhãzinha, os restos da papa de um miúdo mimado como tu que tem tudo do bom e do melhor mas teima sempre que não quer comer, imagina.
A mãe bem tenta, mas ele cospe, deita fora, faz birras, uma verdadeira vergonha!
Claro que muitas vezes é a minha sorte.
A minha e de outros como eu.
E olha que há praí muito gato esfomeado.
E não é só gatos.
Também há muitos cães e cada vez mais pessoas.
A mãe do puto, coitada, vem sempre toda chorosa deitar os restos num caixote do lixo que fica no pátio da casa, eu que já topei isso vou lá regalar-me.
Bem boa aquela papa.
É feita com leite e é muito docinha.
Não entendo porque é que o miúdo nunca come a papa toda.
É como tu, não sabe o que é ter fome.
Se passasse fome um dia ia ver como é bom ter de comer.
Ainda por cima comidinha boa e dada pela mãe, uma senhora tão bonita e simpática e que parece gostar tanto dele. Disse o gato revelando alguma tristeza.
A tua mãe não te dava comida? Perguntou o passarinho.
Não, não dava. Respondeu o gato.
Ou melhor, deu enquanto pode, mas foi pouco tempo.
A minha mãe morreu envenenada por um casal de pessoas más que não a queriam lá no quintal deles, ela coitada só queria um sítio seguro para me ter a mim e aos meus irmãos. Nascemos 7 mas o mais pequenino morreu logo.
Ainda mamámos o leite bom e quentinho da minha mãe uns dias mas depois os donos da casa descobriram a nossa família e envenenaram a minha mãe e atiraram-nos a nós, os 6, para um terreno baldio. Devem ter achado que morríamos de frio e fome e assim nem tinham o trabalho de nos matar.
Mas os gatos tem 7 vidas sabes?
Lá nos fomos desenrascando até aparecer um gato mais velho que nos ensinou a caçar ratos e a procurar no lixo das casas mais ricas as coisas boas que eles deitam fora.
E como vez cá estou. Não sou gordo porque não como muito, mas muito forte e elegante.
As gatas gostam de mim por causa disso.
Levanto bem o pescoço e ando assim, tás a ver?
Olha para isto. Dizia o gato enquanto se punha a andar de um lado para o outro todo pomposo.
Sei que tenho uma bonita postura.
E sou muito corajoso.
Luto pelas gatas com unhas e dentes sempre que é preciso.
As gatas adoram isso. Disse o gato voltando a fazer pose.
Olha lá, já vi que és um gato bom e corajoso mas és muito vaidoso. Riu o passarito.
Claro que sou! Respondeu o gato também a rir.
Se eu não me achar o maior as gatas também não vão achar, é ou não é ó peninhas?
Sei lá se é. Disse o passarinho.
Não sei nada de gatas, nem sei de periquitas quanto mais de gatas.
Eu nasci nesta gaiola e também estive pouco tempo com a minha mãe. Um dia levaram a minha mãe e os meus irmãos e deixaram-me aqui sozinho. Nunca mais vi nenhum periquito e tu és o primeiro bicho que vejo. Só sei que és um gato porque já tinha visto outros como tu naquela caixa chamada televisão e ouvi os miúdos cá da casa apontarem e dizerem que era um gato.
E tu já tinhas visto um periquito? Perguntou o pássaro curioso.
Se queres que te seja sincero, até já comi um, são bons vocês, não tem muito que se coma e dá trabalho livrarmo-nos de tantas penas mas lá que são saborosos são, um verdadeiro pitéu.
Ai, meu Deus? Disse o passarinho voltando a perder a calma
Se comeste e gostaste tanto também me vais comer a mim.
Calma ó medricas emplumado! Eu não matei o outro.
Encontrei-o morto e comi-o só isso.
Não se pode desperdiçar comida.
E se comesse era mais que natural, os gatos comem pássaros.
Mas se queres que te diga com esta converseta toda já não te vou conseguir matar a ti.
Já quase gosto de ti, meu lingrinhas azulado.
Sabes, se calhar vou ser teu amigo e soltar-te, assim ficas livre e podes voar, queres?
Ah, eu livre?
Eu a voar por ai?
Eu?
Ai, meu Deus, não sei.
Eu gostava mas tenho medo! Disse o passarinho.
O quê? Tens medo de ser livre e voar?
Mas que raio de pássaro és tu?
Para que queres então as asas?
Não é para voar que servem as asas?
Não estou a entender?
Olha, eu quem me dera ter asas e poder voar. Disse o gato com olhar sonhador.
O que eu não fazia!
Lá de cima via tudo muito bem, podia ver onde havia comida e nunca mais passava fome, podia conhecer outras gatas sem ser estas daqui das redondezas, podia fazer mais amigos, podia voar para sítios quentes quando aqui faz frio e nunca mais ia dormir encharcado praí num buraco qualquer, podia partir à aventura e conhecer sítios novos, novas paisagens, arranjar novas brincadeiras.
Quem me dera ter asas como tu e poder voar.
Mas és livre! Piou o passarinho.
Pois sou. Completamente livre e não trocava a minha liberdade por nada.
Tu também podes ser livre, ó escanzelado. Eu ajudo-te.
Abro-te a porta para puderes fugir e depois já podes voar em liberdade.
É só descobrir como se abre e solto-te já. Depois ponho-me a andar que tenho de procurar algo para matar a fome, já que não te vou comer a ti não é, meu azulinho dum raio.
Vamos mas é descobrir como se abre esta coisa.
Espera.
Espera aí. Pediu o passarinho.
Eu não sei se quero ser livre assim dessa maneira.
Se eu for livre quem é que me dá comida?
Quem é que me põe água fresquinha todos os dias?
Quem é que me dá uma casa para me abrigar do frio?
Quem é que me faz um ninho para eu ter filhotes?
Ninguém meu! Respondeu o gato.
Ninguém, claro!
Tens de te desenrascar sozinho.
Mas isso parece ser muito difícil! Piou o passarinho.
Claro que é difícil. Muito difícil, mesmo.
Mas quem é que te disse que ser livre era fácil?
Não é nada fácil mas é muito bom.
Nada se compara à liberdade.
É a única coisa que faz sentido.
Mas só para alguns, pelos vistos.
Sabes Azulinho, eu acho que tu tens asas mas é como se não tivesses.
Nasceste numa prisão e vais ser sempre prisioneiro.
Tens medo da liberdade.
Tens asas mas não queres voar.
O medo é de chumbo, sabias?
De nada te servem as asas quando o peso do medo não te deixa voar.
Tens razão. Disse o passarito com olhos cheios de tristeza.
Mas eu não tenho a tua coragem.
Gostava de ser como tu mas não sou.
Pois não. Disse o gato.
Não és nada como eu.
Somos todos diferentes.
Tu hoje pudeste escolher a liberdade e escolheste ficar prisioneiro.
É a tua escolha. E eu não entendo mas respeito.
Mas quero que saibas que há quem nunca tenha podido escolher, sabias?
Eu nunca sonhei ter essa escolha. Piou o passarito a choroso.
Desculpa, não sou capaz.
Tenho medo.
Muito obrigada gato.
Foste um grande amigo não só não me comeste como ainda me querias soltar. Eu é que sou mesmo um parvo!
Vá, vá, pára lá de te lamentares da tua cobardia, eu prometo que cada vez que passar por aqui venho contar-te histórias do mundo, queres? Perguntou o gato.
Adorava, adorava mesmo. Piou comovido o passarinho.
Antes de ires diz-me como te chamas, ó amigo gato.
Chamo-me Minhanhinhau, amigo azulinho.
Vá gora tenho de me pirar e ir procurar comida, estou mesmo esfomeado.
Adeus, meu lingrinhas medricas.
Adeus, gato forte e corajoso.
O passarito levantou a asa para lhe acenar.
O gato sorriu tristemente.
Pensou que aquela pequena asa nunca saberia o que era voar.
Saltou do varandim e desapareceu voando.
A gata minha amiga conta que o gato, até um dia morrer atropelado, voltou sempre para contar as suas aventuras ao passarinho.
Nunca conseguiu entender porque dava Deus asas a quem não queria voar, mas amava tanto a liberdade que não queria deixar de partilhar um pouco da sua com o seu amigo pássaro, eternamente prisioneiro do seu próprio medo.
Por um lado consolava-o saber que ao menos aquele passarinho tinha podido escolher, por outro entristecia-o pensar que ele escolhera não aproveitar a hipótese de ser livre.
A minha amiga gata contou-me esta história para me explicar que só consegue ser livre quem tem uma vontade de liberdade mais forte que a força do medo.
Eu ouvi a história e concordei.
Era sábia e livre a minha amiga gata.
Quanto a mim, cá estou, ainda a aprender a não deixar que o peso do medo me impeça de voar.
Helena Isabel Ponce