Desassossego
O meu alguidar encarnado
Quando eu era pequena a minha mãe conta que eu tinha um alguidar encarnado que com genuíno entusiasmo mostrava a toda a gente para que partilhassem comigo a visão dos meus peixes nadando naquele aquário improvisado.
Mostrava a todo o mundo o interior desse meu alguidar, chamando a atenção para os pormenores que a minha mente infantil considerava mais importantes: a forma dos peixes, as dimensões, as suas cores e principalmente o que faziam e como interagiam dentro do meu alguidar encarnado.
A reacção das pessoas ao serem confrontadas com esta sincera e entusiástica partilha da minha parte era de verdadeira desconcertação.
Acabavam sempre por me dizer aquelas coisas que todos os adultos dizem quando não sabem o que dizer: - Realmente que lindos peixes!
- Sim estou a ver que tratas bem deles, estão com um ar satisfeito.
- Então e como se chamam, já lhes deste um nome?
Apesar de todos dizerem o mesmo eu gostava de os ouvir, de lhes mostrar os meus peixes e com paciência respondia a tudo.
Explicava que realmente os meus peixes eram os mais bonitos do mundo.
Mostrava-lhes os peixes a comer os pedacinhos de comida que eu atirava para dentro do alguidar, para que fossem testemunhas que eu sabia tratar deles muito bem e por isso eles tinham aquele aspecto feliz e satisfeito.
Dizia-lhes o nome de cada peixe, e até explicava as relações existentes entre eles:
Esta é Vermelhinha, e casada com aquele ali estás a ver?
Ele chama-se Mário que é o nome do meu pai.
Estes dois mais pequeninos são os filhos. O Traquina é o mais novo e está sempre a fazer asneiras, e aquela amarela com uma risca azul no rabo é a Belinha, porque é muito bonita. A Belinha por vezes zangasse com as malandrices do mano, mas no fundo são muito amigos.
Nunca me aconteceu mostrar o meu alguidar a alguém que não visse tudo o que eu mostrava, e que não admirasse a beleza dos meus peixes.
Creio que a minha inocência desarmava qualquer um e contradizer-me seria uma crueldade.
Creio que o meu entusiasmo era tal que tinha o poder de fazer com que todos vissem o que eu lhes mostrava.
A verdade, que não era a minha obviamente, é que eu transportava de um lado para o outro com todo o cuidado e mostrava orgulhosamente a toda a gente: um alguidar encarnado cheio de água.
Os lindos peixes coloridos existiam mas não no alguidar.
Os lindos peixes coloridos existiam na minha imaginação.
No alguidar encarnado apenas água.
Tenho saudades de imaginar assim.
Tenho saudades de acreditar com tanta força.
Tenho saudades desse entusiasmo que fazia com que alguns acreditassem comigo e outros, já nessa altura, me achassem louca.
Tenho saudades de ver o que os meus olhos queriam ver.
Já passou tanto tempo.
Hoje vejo tanta coisa.
Tanto já passou por estes meus olhos cansados de ver tanto.
Dói.
Dói este cansaço.
Dói ver tanto.
Tenho saudades do meu alguidar encarnado onde eu via o mundo.
Tenho saudades do meu alguidar encarnado cheio apenas de água, que me dava liberdade de o encher com o mundo que tenho dentro de mim.
Hoje o meu alguidar sou eu.
Estou cheia, quase a transbordar…no entanto de mim não perco uma gota.
Peixes coloridos ainda os tenho, nadando neste mar de mim.
Hoje não os vejo.
Esconderam-se nalguma rocha para fugir à tempestade.
Mostrava a todo o mundo o interior desse meu alguidar, chamando a atenção para os pormenores que a minha mente infantil considerava mais importantes: a forma dos peixes, as dimensões, as suas cores e principalmente o que faziam e como interagiam dentro do meu alguidar encarnado.
A reacção das pessoas ao serem confrontadas com esta sincera e entusiástica partilha da minha parte era de verdadeira desconcertação.
Acabavam sempre por me dizer aquelas coisas que todos os adultos dizem quando não sabem o que dizer: - Realmente que lindos peixes!
- Sim estou a ver que tratas bem deles, estão com um ar satisfeito.
- Então e como se chamam, já lhes deste um nome?
Apesar de todos dizerem o mesmo eu gostava de os ouvir, de lhes mostrar os meus peixes e com paciência respondia a tudo.
Explicava que realmente os meus peixes eram os mais bonitos do mundo.
Mostrava-lhes os peixes a comer os pedacinhos de comida que eu atirava para dentro do alguidar, para que fossem testemunhas que eu sabia tratar deles muito bem e por isso eles tinham aquele aspecto feliz e satisfeito.
Dizia-lhes o nome de cada peixe, e até explicava as relações existentes entre eles:
Esta é Vermelhinha, e casada com aquele ali estás a ver?
Ele chama-se Mário que é o nome do meu pai.
Estes dois mais pequeninos são os filhos. O Traquina é o mais novo e está sempre a fazer asneiras, e aquela amarela com uma risca azul no rabo é a Belinha, porque é muito bonita. A Belinha por vezes zangasse com as malandrices do mano, mas no fundo são muito amigos.
Nunca me aconteceu mostrar o meu alguidar a alguém que não visse tudo o que eu mostrava, e que não admirasse a beleza dos meus peixes.
Creio que a minha inocência desarmava qualquer um e contradizer-me seria uma crueldade.
Creio que o meu entusiasmo era tal que tinha o poder de fazer com que todos vissem o que eu lhes mostrava.
A verdade, que não era a minha obviamente, é que eu transportava de um lado para o outro com todo o cuidado e mostrava orgulhosamente a toda a gente: um alguidar encarnado cheio de água.
Os lindos peixes coloridos existiam mas não no alguidar.
Os lindos peixes coloridos existiam na minha imaginação.
No alguidar encarnado apenas água.
Tenho saudades de imaginar assim.
Tenho saudades de acreditar com tanta força.
Tenho saudades desse entusiasmo que fazia com que alguns acreditassem comigo e outros, já nessa altura, me achassem louca.
Tenho saudades de ver o que os meus olhos queriam ver.
Já passou tanto tempo.
Hoje vejo tanta coisa.
Tanto já passou por estes meus olhos cansados de ver tanto.
Dói.
Dói este cansaço.
Dói ver tanto.
Tenho saudades do meu alguidar encarnado onde eu via o mundo.
Tenho saudades do meu alguidar encarnado cheio apenas de água, que me dava liberdade de o encher com o mundo que tenho dentro de mim.
Hoje o meu alguidar sou eu.
Estou cheia, quase a transbordar…no entanto de mim não perco uma gota.
Peixes coloridos ainda os tenho, nadando neste mar de mim.
Hoje não os vejo.
Esconderam-se nalguma rocha para fugir à tempestade.
Hoje há tempestade dentro de mim.
Tenho saudades do meu alguidar encarnado cheio apenas de água ondulando suavemente ao sabor da minha imaginação.
Hoje há tempestade dentro de mim.
Hoje até os peixes assustados, encolhidos nalgum recanto de algum rochedo dentro de mim sentem saudades de quando viviam no meu alguidar encarnado.
Isabel
Alfred Gockel
28 Comments:
Agradeço-lhe as suas palavras. São justas e acertadas com os equívocos
sobre a cultura. O meu texto em que
me declarava inclinado a ir sentar-me no bando do carro de madeira,era
apenas uma metáfora sobre o cresci-
mento actual e a realidade também sábia daquele empo em que se faziam
aqueles carros (hoje estudados em
design). Sou moderno no que posso e acho curial com os nossos valo-
res principais.Mas gosto de acenar
para e com a velha sabedoria, porque aí se juntam duas coisas diferentes e semelhantes. Podemos gostar dos vitrais de Chagall e do templo de Karnac.
Saudações amistosas. Virei dizer alguma coisa sobre o «Desassossego»
Rocha de Sousa
Bem...não me lembro ao certo do que outrora imaginava? Ou será que sempre imaginei e sonhei acordado? Estarei ainda nessa fase? Não sei... Adorei o teu texto! Não interessa se é real ou não, interessa sim que um dia imaginamos o mundo assim...muito simples, muito límpido...! Beijo grande
Olá!
Lindo teu texto!!!
A saudade é uma emoção chata de se sentir,mas gostosa!É um pedacinho teu distante mas que um dia volta.
Abraços!
Espero, que o teor de sal,não tenha subido demasiado nessa água..agora que iniciei ler-te, gostaria que ela fosse potável.
..existe sempre um amanhã..
intruso
(intruso e desconhecido)
Isabel, obrigado pela visista ao Oficina e...Bom! Aqui se escreve com entusiasmo e muito bem. Certamente não teríamos os mesmos olhos inocentes de outrora, pois vemos as "cousas" com mais impressões e detalhes que aparentemente não víamos quando gurí. Quisera voltássemos à analisar as belezas da vida, com a pureza inconteste dos corações das crianças.
Belo texto, conduz à reflexão! Fica bem, abraços!
Agora que o dizes... acho que ainda não tinha parado para pensar que, também eu, sou tempestade daqual todos os peixes se escondem...
Gostei mesmo:)
Um abraço grande
percebo que saudade é essa,porque a conheço bem...desconcertante ela e ás vezes até nos doi lembrar dela...
beijo vagabundo
Que bonitas memórias...
Eu tinha um berlinde transparente que roubei ao meu irmão mais novo e punha no olho tipo caleidoscópio, para ver o mundo deformado, com outras cores, árvores ao contrário...
Que bonito que era sonhar nessa altura...
Beijinhos :)
Tens saudades de te refugiar no imaginário?
Talvez a tempestade tenha uma mensagem para ti...
Beijinhos
Confidência...
Eu ainda vejo peixes de mil cores em alguidares vermelhos onde só há água!!!!E ainda tento convencer os outros de que os peixes estão lá...!
Até outra magia...
Cheers
Cara Isabel,
Voltei hoje mesmo, li o seu texto, vi o seu alguidar vermelho e fiquei
completamente rendido ao «novelo» de uma vida que ele envolve.Alego-
ria fascinante e peturbadora, viaja
-se pela nossa própria infância on-
de o imaginário se realizava em personagens dos sonhos, dos desejos
já secretos, por vezes em folhas rasuradas da iniciação à banda de-
senhada. Sobravam quadrados vazios,
aqueles que a maturidade já não foi
capaz de preencher.O seu alguidar vermelho (um quadrado vazio, a fá-
bula interrompida,mostra-nos enfim quem somos, um real impossível que
nos escapa, um sonho de que os nos-
sos olhos têm saudade, aquém do li-
mite. Como eu desejo sempre «ver» o
que imagino, num vazio que já sei
onde termina.
Agradeço-lhe este seu belo texto
Rocha de Sousa
Sentada dentro do seu alguidar vermelho cheio de água, a miúda batia alegremente com mãos, espalhando memórias à sua volta. E ria muito. Era feliz.
Não o sabia na altura, mas voltaria um dia para apanhar esses pingos de recordações.
Um texto belíssimo, muito sofrido.
Atrevo-me a dizer que abras o teu coração para sair toda essa dor, todo esse mar que te sufoca.
Se fechares os olhos, ainda consegues ver o que quiseres. Mas sem sofrimento!
Há dias bons, outros melhores virão.
Um beijo
Grata pela simpática visita à Casa de Maio.
Beijinho.
Olá Isabel
Tem dias que a tempestade se levanta dentro de nós - e recorremos "àquele alguidar vermelho" que o tempo faz parecer um "espelho" translúcido - mostrando os peixes - que lutam para sair na procura - do alguidar vermelho....
Fabuloso este texto
Beijinhos com carinho
Bom resto de semana
Quando eras assim... pequenina, existias no requinte de um silêncio que não adivinhavas que um dia mais tarde terias de pagar numa divisa monocromática então tão pouco entendida e por sua vez contrariada na segurança do próprio desconhecimento o qual, por outro lado, não tinha a emergência de se libertar da sua isomorfia.
A imaginação é quanto a mim, a ciência da inocência.
Adorável minha cara.
Apesar de todo o cansaço.. de toda a tristeza que estas linhas encerram e desterram..
Apesar do 'Doí ver tanto'..
Apesar destes sentimentos... Não diria melancolia.
Diria talvez raiva.
Sim.
Raiva.
Apesar de tudo isto.
O teu texto é brilhante.
A analogia.
O sentir.
O começar a ler devagar a infância e a correar apressadamente o doer tanto de adulto.
Gostei muito.
Apesar deste espelho que todos os dias encontro aqui.
Apesar de todos os dias eu sentir aqui, ali e acolá as saudades.
Do alguidar.
Isabel, é sempre um prazer ler-te.
Um abraço enorme.
Que sorrias ao lembrar do alguidar e que sorrias igualmente ao senter o 'Doí ver tanto'.
Porque... doí... mas .. é Tanto!
Que bom ter uma memória infantil tornada saudade nos momentos presentes menos felizes, ou nada felizes!
Até sempre
Para mim, que estou de fora, parece-me que não perdeste nada da tua imaginação. Mesmo nos momentos menos bons a tua vontade de comunicar e de contar impressiona pela sinceridade com que nos fazes sonhar, viver as tuas fantasias. E tantas que elas são. Gostei muito do texto, esta recordação, quase um conto para crianças. Tomei a liberdade de contar a tua história à minha filha, hoje de manhã, em vez do canal panda, não imaginas as perguntas que me fez..."O alguidar azul também serve?", "Para quê?", "Para encher de água e ver os peixes da menina...Não percebes nada!".
Gostei muito do teu desassossego, faz-te escrever de dentro...e muito bem.
Um abraço amigo!
P.S. Depois da tempestade vem sempre a bonança...
O nosso alguidar é um rodopio de ideias... já não conseguimos ter o pensamento linear e singular de quando os problemas eram mínimos!
Eu acho é que o teus pais não achavam graça ao alguidar sempre para todo lado. (Lol). As vezes as saudades são o nosso refugio.
lindo quadro e palavras cheias de sentimentos, que eu própria subscrevo na integra. A vida dá-os estas instabilidades que a nossa cabeça não quer de modo algum.
Fica bem.
jinhos meus
Olá!
"Tenho saudades de imaginar assim.
Tenho saudades de acreditar com tanta força." Não tenhas! Tu ainda és assim, há sempre outras novas vivências que desabrocham em ti pequenos mistérios, pequenos segredos...continua a revelar a beleza, aquela que vem da alma e é inimaginável...
Bjs.
K desassossego, mulher...
;-P
Beijokinhas....
Tempestades.... eu adoro tempestades... cresço com elas, toda a minha alma cresce... todo eu fico desassossegado...
Ciao, jokas...
Pela primeira vez visito o seu lugar e na verdade gosto do li, da forma como conseguiu transmitir-me a sua identificação/paixão pela escrita.
Este alguidar encarnado encantou-me.
Voltarei com mais tempo.
Obrigada pela partilha de si.
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Mas minha querida ,assim são as "águas" grandes dessa tua alma,o acreditar esta em ti,as saudades podes "mata-las" ao recordar e ao tentar fazer a diferença,mas o tempo esse nunca volta atras e ai sim é que fica a mais dolorosa das recordações: nos dias felizes!
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