quarta-feira, novembro 22, 2006

Começar de novo

Capitulo III (Excerto)
Luisa
O cenário era um hospital igual a tantos outros.
Um hospital público, igual aos outros hospitais públicos.
Uma enfermaria, com 5 camas.
Uma enfermaria igual a todas as outras.
Cinco camas iguais, cada uma com o seu número, iguais a todas as camas de hospital.
Em cada cama um paciente, igual a todos outros.
Lenta calma e pausadamente, como se nada de grave se passasse a sua volta, moviam-se os vários profissionais hospitalares. Médicos, enfermeiras, auxiliares, maqueiros, técnicos de todos os géneros.
Eram tantos!
Tanta a variedade dos cargos que ocupavam.
Comum a todos: a indiferença.
Cada caso é um caso, diz-se.
Nos hospitais não!
Nos hospitais todos os casos são apenas mais um caso.
Ela melhor que ninguém sabia-o.
Ela melhor que ninguém sabia que apesar de afirmarem que aquela calma era apenas aparente, que tinha objectivo de transmitir tranquilidade e uma sensação de segurança aos que sofrem, essa afirmação não correspondia à realidade.
Ela sabia qual era verdade.
E a verdade é que já não se importavam.
Ela sabia porque era enfermeira.
No principio, sim.
No princípio era diferente.
Rendidos ao apelo da vocação.
Movidos pela motivação de ajudar.
Consumidos pela paixão à profissão.
Inocentemente, ainda, susceptíveis a amar o próximo.
O início era apenas no início.
Lentamente sem darem por isso tudo ia mudando.
A verdade é que a indiferença aos poucos ia tomando conta de todos.
O pior dos vírus, a pior das doenças, invadia os hospitais, e os profissionais hospitalares, nada faziam.
Nem eles nem ninguém.
Nada se fazia na área da prevenção.
Nada se fazia na área do diagnóstico.
Nada se fazia na área terapêutica.
E a ciência médica não procurava a cura.
Como poderiam fazer alguma coisa se a própria existência da doença lhes era desconhecida.
Altamente contagiosa, proliferava alastrando-se por hospitais inteiros.
Nem nomes lhe deram, naturalmente.
Como se dá um nome a algo que não existe.
Vamos chamar-lhe SIH, Síndrome da Indiferença Hospitalar.
Em inglês HIS, Hospital Indiference Syndrome.
O primeiro sintoma é chamar às pessoas pacientes.
Depois de identifica-las como casos.
Seguidamente reuni-las em grupos de casos semelhantes.
Depois de devidamente identificadas e classificadas, rotula-las dando-lhes um número que por sistema corresponde ao número da cama que ocupam.
Os afectados pela doença falam um código estranho que só eles entendem, sendo frequente mesmo entre eles assistir a dificuldades na capacidade de entendimento.
Diálogo típico entre infectados com SIH:
-É pá, aquele paciente que entrou agora é complicado.
-Qual?
-O caso de Crohn.
-Não tou a ver.
-É pá, o da cama 14 na 2.
-Ah, já tou a ver!
-Não reage a messalazina, tou lixado!
-Exprimenta a sulfassalazina.
-Pois pá, mas não tava nada a apetecer-me cá ficar até mais tarde para ver a reacção, não é?
-Achas que o gajo não se aguenta até amanhã.
-Hum, duvido pá.
-E não quero ter problemas com o chefe, imagina que dá para o torto.
-Pois pá tens razão, mas não era hoje que tinhas aquele jantar com aquela miúda gira que conheceste no outro dia?
-Era pá, já viste o meu azar! Nem acredito que me havia logo de aparecer este filho da mãe que vá se lá saber porquê não reage à terapêutica!
-Podes crer, ganda galo o teu !
A verdade é que a indiferença, o virus SIH, tinha tomado conta de todos.
Fazia parte dos sintomas da doença nem dar por isso.
Para os infectados era apenas natural.
Afinal os profissionais de saúde são humanos, não dão para tudo, não se podem preocupar com tudo, ora bolas! Esta era a opinião generalizada no sector.
São apenas humanos.
E os pacientes são muitos.
Vão e vem.
Uns morrem.
Outros safam-se.
Uns recuperam.
Outros nunca voltam a ser o que eram.
Principalmente são muitos.
Os profissionais de saúde são poucos para tanto paciente.
São apenas humanos.
São apenas profissionais como os outros.
O verdadeiro profissional não deve criar ligações emocionais com os seus pacientes.
Não seria correcto. Estaria contra o código deontológico.
Todos os pacientes devem ser tratados como iguais.
Evitar a todo o custo a ligação emocional.
Entre o evitar da ligação emocional e a total indiferença é um passo.
Um passo apenas.
Entre o tratar todos como iguais e tratar todos como casos, números é um passo.
Um passo apenas.
Um passo gigante para quem esta do outro lado.
Porque há um outro lado.
O lado de quem está agarrado a uma cama de hospital.
O lado de quem é um caso.
O lado de quem é um número.
Porque esse número foi atribuído a uma pessoa.
Porque esse número, tal como o profissional de saúde, é um ser humano.
Porque esse número sofre.
Ela é um desses números agora.
Está ali.
Deitada na sua fria e utilitária cama hospitalar.
Antes estava de um lado, agora está do outro.
Antes era uma indiferente profissional hospitalar cumprindo as regras deontológicas.
Agora é a paciente da cama 22.
Na cama 22 a paciente está em coma.
Os pacientes como ela são dos poucos tratados de forma especial.
Tem direito a mais que indiferença.
Para eles existe um especial olhar crítico.
As vezes com sorte até algum desdém.
Ela era a paciente da cama 22 e fazia parte desse grupo especial:
Os suicidas!
“ Andamos nós prá qui a salvar vidas e estes gajos decidem dar caibo da deles por dá cá aquela palha…”
“Dá vontade de nem tratar, queriam morrer não era?”
"Os Suicidas" deviam ter uma ala só para eles. Estaria de acordo com o tratamento especial que lhes é dado.
A paciente da cama 22 , alem de pertencer ao incómodo grupo pertencia ao grupo dos profissionais de saude, tornando o seu acto um total desrespeito para com a profissão e com os colegas.
A paciente da cama 22 tem um nome.
Chamasse Luísa.
Tem 36 anos.
É enfermeira num lar de terceira idade.
Solteira.
Sem filhos.
Vive sozinha
Costumava gostar do mar, por isso pagava um balúrdio só para viver numa casa em que pudesse acordar e ver o mar.
Costumava ser uma apaixonada por dança, por isso, sempre sozinha, tentava ver todos os espectáculos que a carteira e os horários dos turnos lhe permitiam.
Costumava gostar de cozinhar, considerava a culinária uma arte, por isso mesmo quando chegava a casa já muito cansada não deixava de se pôr ao fogão criando. Aliava o prazer de cozinhar ao prazer de se mimar um pouco.
Dizia que na cozinha era uma artista e que as suas criações culinárias eram verdadeiras obras de arte.
Os poucos que experimentaram não hesitaram em confirmar o seu verdadeiro talento artístico.
Costumava gostar da vida.
Costumava gostar de viver
Um dia deixou de gostar.
O tempo foi passando e continuava sem gostar.
Cada dia que passava gostava menos.
Deixou de olhar o mar.
Deixou de ir aos seus espectáculos de dança.
Deixou de cozinhar.
Deixou de achar que a cozinha era uma arte e ela uma artista.
Deixou de gostar do dia.
Deixou de gostar da noite.
Deixou de gostar.
Deixou de viver.
Já estava morta quando se matou.
O caso de coma por suicídio da cama 22, é o caso do cansaço de viver de uma mulher chamada Luisa.
Está em coma há 4 dias.
Fez três lavagens ao estômago.
Tem tubos enfiados no nariz.
Agulhas enfiadas nos braços.
Está em coma há 4 dias mas esta viva.
Logo ela, que já estava morta quando se matou.

Isabel

(Continua)
" Suave toque de anjo"
Dream Catcher

32 Comments:

Blogger bettips said...

É tocante, Isabel. Escrito com um ritmo alucinante e uma sensibilidade de cristal. E verdadeiro. Triste como as verdades podem doer. Um abraço.

quarta-feira, novembro 22, 2006  
Blogger A. Pinto Correia said...

temo, minha amiga, que a maior parte das pessoas - mesmo as que pensam terem saúde - já esyeja morta e ainda não se tenah dado conta disso.
A indiferença perante a dor é um dos terríveis sintomas de uma sociedade moribunda.
Beijo

quarta-feira, novembro 22, 2006  
Blogger Delfim Peixoto said...

Fiquei com uma carta melancolia, mas por poutro lado o texto é lindissino.
bjs

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger OLHAR VAGABUNDO said...

deves e tens de ser uma pessoa super sensivel...
beijo vagabundo

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger António Melenas said...

Cá continuo a seguir a história. Bem urdida e reveladora de grande sensibilidade.
Abraço

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger Misantrofiado said...

A luisa engoliu um fogo asfixiante... inflamou-se.

Para a Luisa:
"Para que vim a esta clara vida?
Para que vim, se um dia hei-de cair
Da haste dela? Para que no solo
Se abre o poço da ida? Porque não
Será sem fim [?...]

Fernando Pessoa

Para a Isabel:
Mais logo... um Inferno digno de ser olhado.

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger naturalissima said...

Fiquei sensibilizada com este quadro pintado de tons cinzas...
Fiquei com vontade de dizer que todas as viagens são possiveis, mesmo quando são dificeis... elas são possiveis sim.
Tocaste-me com esta história... que a viagem, seja ela qual for, deixe de ser dor, lamento, sacrificio,...
Por cá volatrei concerteza, para te acompanhar.
Obrigada pelo comentário.
Fizeste-me olhar de outra forma paar aquela fotografia
Um beijinho
Daniela

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger Pierrot said...

Meu Deus Isabel.
Estou arrepiado e tive de desligar a música que costumo ouvir quando ando por aqui a "cuscar".
Que texto brutal minha cara amiga.

Olha, eu nem tenho adjectivos para o texto. Franzi a minha testa e o sobrolho, numa mescla de pena, indignação, admiração e surpresa.

Tenho a emoção à flor da pele que tento explicar-te em meia dúzia de linhas.

Infelizmente, tenho a certeza que pouca gente a lerá pois o tamanho da história e a falta de tempo é inimiga da aprendizagem.

Estou estupefacto.
Digo-te que se fazem tantos documentários televisivos sobre tanta coisa e esta história, aqui no anonimato.

Minha cara amiga, só te tenho a agradecer pela lição que me deste. Um texto onde cabem tantos sentimentos diversos e outras tantas "lições de moral".

Eu que assisti, por força do meu curso superior, a tantas autópsias, inclusive de um suicida, estas tuas palavras trouxeram muita coisa à memória, quer em relação aos ditos pacientes, quer em relação aos "médicos".

Numa palavra, BRAVO Isabel.

Bjos daqui de um Pierrot enternecido.
Eugénio

Ah, já agora, uma vela pela Luisa.

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger Pierrot said...

E já me esquecia...

Uma palavra muito especial para a fotografia e o seu titulo.
Estão simplesmente perfeitos.
Bjos daqui
Eugénio

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger david santos said...

Está lindo, Isabel, está lindo!
Adorei. Vou passar por aqui mais vezes. Durante o fim-de-semana também vou visitar os seus amigos. Adoro os comentários que fazem ao trabalho da Isabel, bem merecido.
Até sempre.

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger veritas said...

Olá Isabel!

Gostei de conhecer, tecida entre os teus dedos, obreiros de uma prodigiosa mestria intelectual, a Luísa...Sei que continuarás a surpreender.

Bjs.

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger Bruna Pereira Ferreira said...

Eu choro sempre nos hospitais.
Não aguento tanta dor e tanto cheiro a remédios e a morte.
Lindo texto, como sempre.

;)

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger Besnico di Roma said...

Excelente texto, forte, verdadeiro, de um ritmo alucinante. Mas tu sabes isso.
Muitos, muitos de nós já estamos mortos mesmo antes de morrermos.
Voltarei para ler os outros e comentar.
Um carinho para ti.

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger José Manuel Dias said...

...cativa...Bjs

quinta-feira, novembro 23, 2006  
Blogger Alberto Oliveira said...

estava morta
quando se matou
o seu nome era Luisa
dum nono andar se atirou
tanta altura era precisa
para o cento e doze aparecer
morreu antes de se atirar
sem asas ia morrer
era morte anunciada
envenenou-se no ar
e a vida ali acabada.

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger Marina said...

Isabel, so pra dizer que gostei mt da historia.
Quer dizer, a historia e triste, mas o texto e bonito.

Desculpa se as vezes nao comento as historias, mas quase sempre ja foi tudo dito...

Beijitos e ate breve

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger Maria said...

isabel
parabéns pelo texto, lindíssimo.
perturba-me, e por isso mesmo não consigo dizer mais nada.
um beijo de boa noite

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger InConfidências said...

Olá Izabel,fantástico!

Eis aí, um texto de utilidade pública... um texto para nos fazer pensar...inspirador.

Acredito que tu tenhas um coração que nunca seca,deves ter um jeitinho singular de ver e viver a vida,mesmo que em alguns momentos esta não esteja tão boa.

E para a Luiza.
Sabemos que nao estamos sozinhos neste mundo feito de circunstancias tao belas ...mas por vezes tão cruéis.


Muito obrigada pela visita no meu Cantinho Izabel!
Fico FELIZ de encontrá-la nesse MAR virtual!

Abraços.
C.britto

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger Aestranha said...

Conheço tantas Luisas e Luises... Nem todos os que andam na terra estão vivos!

Beijo

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger Rocha de Sousa said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger Rocha de Sousa said...

Isabel, estou recorrendo a este artifício, pois os endereços nore..
voltam para trás no e-mail. No meu painel você aparece como Veritas (também) e o meu amadrismo não me permite deslindar tanta subtileza, pois o seu profile não fala disso e as suas visitas não o indicam.
Gostarei de voltar porque achei importante o seu último texto.
Desculpa a balbúrdia. Esclareço entretanto
Rocha de Sousa

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger Unknown said...

Estou ansiosa por saber o resto...
Gostei da escrita e adorei a história, que emociona de facto...

Beijinhos!

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger Cris said...

Ai, Isabel, as verdades doem, mesmo ditas tão habilmente como o fazes!

Obrigado pela Visita a Terra.

Bjo e bom Wk

Cris

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger PAULO SANTOS said...

Parei aqui num salto vindo de ouro blogg!
Permite que fique...
Esta escrita intensa e incisiva...
Deste abrupto acordar para a maior das verdade!
A vida é uma contingencia para cumprir a morte!
Voltarei para ler o fim de tão fragil e intenso texto!

Um beijo e um convite
Paulo Santos
www.interiornorte.blogspot.com

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger Paúl dos Patudos said...

Isabel
È realmente chocante e esclarecedor, minha amiga.
Eu pessoalmente já vivi estas imagens aqui retractadas e continuarei a viver, porque necessito muitas vezes de cuidados hospitalares e o que aqui expôes é de uma verdade crua, infelizmente.
Algumas ainda são sensíveis outras nem por isso e posso dizer-te que vi coisas que nunca pensaria ver, minha amiga. Eu já vi gente morrer ao meu lado sem poder fazer nada.
Mas não podemos meter todos no mesmo saco e ainda bem que é assim, senão nem sei como seria.
Um bem haja aos verdadeiros médicos e enfermeiros que se dedicam à causa, mas com HUMANIDADE.A ESSES O MEU ABRAÇO SENTIDO.
Vou continuar a ler a história quando a escreveres.
beijinhos
Ana PAula

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Isabel,
Já esclareci os novelos dos endereços. Estive a ler «Começar de
Novo», bela e dolorosa eriva por um dos males do mundo, hipérbole e metáfora ao mesmo tempo sobre aqueles que só desejam ler «leve» cospem em tudo o que é «pesado», detestam os «intelectuais» e dizem que a vida é para ser vivida.Na 24 de Julho. No B.Alto. No Intendente.
Na promiscuidade das ruas sem nome.
Isto parece conservador. Quando me chamam de pessimista, eu digo: o verdadeiro pessimista é um «opti-
mista lúcido».
Boa tarde
Rocha de Sousa

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger Light said...

São tantos tantos assim....é mais um "caso"

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Anonymous Anónimo said...

A verdade pode ser muito cruel. Bom fim de semana.

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Que aconteceu à nossa amiga Alice que está desaparecida?

sexta-feira, novembro 24, 2006  
Blogger eu... said...

triste mas realista.
um beijo

sábado, novembro 25, 2006  
Blogger P. Guerreiro said...

Decididamente uma história para não contar à minha filha, imensa de ironia e contada de forma humana...Muito humana e muito viva.
Um abraço e parabens pela tua escrita.

segunda-feira, novembro 27, 2006  
Blogger RD said...

Lúcido! Lúcido! Lúcido!

Um Beijo,
Diniz

terça-feira, janeiro 30, 2007  

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