quinta-feira, novembro 30, 2006

Estranha forma de amar

Eugénio Rodrigues ( Pierrot) fez uma proposta original, interessante e irrecusável para quem gosta de escrever histórias :
"Lembrei-me de vos propor que postassem vocês o texto que quisessem, título incluído, bastando que para isso vos deixasse esta foto para que vos servisse de mote. Tomem como referência a porta da-casa-de-ninguém, a cadeira que é de não-sei-quem, o cão que pelo asgar se deve chamar Faísca, etc e coisa e tal. O que quiserem... (.....)"
Esta é a minha história:
O amor é um lugar estranho

Chegou a um daqueles sítios considerados, no mínimo, tenebrosos, chamados asilos.
Era um asilo de velhos.
Diz-se que a excepção confirma a regra e este era um desses casos.
Apesar de ser um asilo nada tinha de tenebroso.
Era um palácio antigo, com extensos e bem cuidados jardins, mantendo toda a sua fachada exterior e o interior devidamente adaptado ao fim a que se destinava: proporcionar tratamento e alojamento a velhos doentes e desamparados.
Ela não era velha.
Mas estava doente, muito doente.
E desamparada, muito desamparada.
Ali encontrou os cuidados de saúde que necessitava.
Encontrou o carinho, a segurança e o apoio que já se esquecera à muito do que significavam.
Chegou lá sem falar.
Com o corpo encarquilhado como um papel amachucado e pisado com força.
Não andava.
Não se sentava.
Não se mexia.
Nela nada tinha movimento.
Nem o olhar.
Parado e fixo num ponto que ninguém, a não ser ela, sabia qual era.
(saberemos depois)

Chegou lá vinda de um sótão.
O sótão de uma casa.
A casa desta foto.
Um sótão de meio metro de altura.
Onde uma vez por outra lhe deixavam comida.
Dividia o pouco espaço existente com alguns ratos.
Seus companheiros.
Sua única companhia.
Dava-lhes comida.
Por vezes a comida era pouca.
Por vezes deixavam-na vários dias sem alimento.
Os seus companheiros não gostavam nada quando isso acontecia.
Quando faltava a comida eles comiam-na a ela.
Não muito.
Apenas um pouco.
Só uma dentada aqui outra ali.
A prova é que ela estava viva.

Quem a colocou naquele sótão vários anos foi o marido.
Quem deu sinal de alerta foram os vizinhos.
Estranhamente apenas ao fim de vários anos.
Mais estranhamente ainda, não foi porque dessem pela sua falta.
Foi o cheiro.
O que lhes chamou a atenção foi o cheiro nauseabundo que vinha da casa .

Antes disso vivia naquela casa, submissa e feliz.
Ela.
O adorado marido.
E um cão.
Ela achava que era feliz.
O cão era feliz.
O marido não era nada.
Ela sentia-se verdadeiramente satisfeita com a vida que tinha.
Tinha tudo.
Um marido que amava profundamente.
Um cão meigo, carinhoso, fiel, que a olhava com olhos de mel
mostrando sem pudor todo o amor e devoção que nutria pela dona.
Quando não estava a cozinhar, a limpar a engomar a esfregar
ou a cumprir os seus deveres de esposa satisfazendo os desejos físicos do marido, estava no alpendre da casa, afagando o cão retribuindo-lhe com mimo o mel que ele lhe oferecia com o olhar.

O marido um dia fartou-se dela.
Guardou-a no sótão, como um objecto velho que já não se quer usar.
Ela lá ficou.
Obediente.
Sem um grito.
Sem um gemido.
Sem um ai.
Ficou onde ele a colocou.
Deixou-se ali ficar silenciosa, inerte, aparentemente meia morta.
Ficou lá vários anos.

Depois de descoberta pela vizinhança o carinhoso marido transferiu-a do sótão para o tal asilo para velhos.
Ela lá ficou.
Colocada onde ele a colocou.
Mais uma vez.
E ali se deixou ficar.

No asilo foi melhorando.
Muito lentamente, mas foi melhorando.
Chegou a conseguir sentar-se numa cadeira de rodas.
Todos se esforçavam por ela, todos menos ela.
Ela limitava-se a ali se deixar estar.
Aparentava estar morta por dentro.
Não se conseguia que dissesse uma palavra.
Tentou-se tudo.
Todos os temas.
Menos um : o marido.
O tema era proibido, obviamente, por medo de a fazer entrar em choque.
Assim tinha sido aconselhado por todos os psicólogos, e psiquiatras que continuamente a observavam.
Um dia uma miúda nova que por vezes lá fazia voluntariado perdeu a cabeça e levada pela esperança e pelo desespero de tentar, tentar e não conseguir arrancar-lhe uma única palavra arriscou.
Arriscou o mais arriscado.
Arriscou o mais proibido.
Disse a palavra proibida: marido

Foi nesse momento que o milagre aconteceu.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas.
Não meus amigos, não foram lágrimas de tristeza.
Foram lágrimas de ternura e de saudade.
Na face, outrora inexpressiva, desenhou-se um sorriso.
Não meus amigos, não foi um sorriso de ironia.
Foi um sorriso de alegria.
Toda ela se encheu de brilho.
Não meus amigos, não foi um brilho de raiva.
Brilhou de amor, de paixão.

E falou.
Falou para pedir que ele a fosse ver.

Ele foi.

Depois da curta visita dele ela iniciou os tratamentos com vontade.
Começou a falar.
Nele
No cão
Em voltar para casa.

Ele fazia o favor de ir lá de vez em quando.
E nesses dias ela resplandecia.
Ele por vezes faltava à tão esperada visita e ela morria de novo.
Renascia quando ele voltava.

A casa onde moravam é a da foto.
O sótão é naquela casa.
O cão é o da foto e vive à porta: espera o regresso da dona e recusa viver no mesmo espaço que o animal da casa.
Ela chama-se Dulce.
O cão é o Fiel
O marido não merece nome.
Não é gente.
Não é pessoa.
Não é humano.
Apenas mais um canalha que o sistema permite que ande à solta.
O ponto onde ela fixava o olhar era a memória da imagem dele.
Esta história é verdadeira.
Apenas os nomes estão alterados.
Apenas a casa não era a da foto.
Apenas o cão não era o da foto.
A miúda cheia de esperança que lhe arrancou a primeira palavra era eu.

O amor é mesmo um lugar estranho.

Isabel

Fotografia de Rosalina Afonso

26 Comments:

Blogger Fragmentos Betty Martins said...

Olá Isabel

Está uma história cheia de sentido[s]-sentir[es] além da tua grande criatividade (que é fantástica)tem por "nome" de ser verdadeira, de facto;

"O amor é mesmo um lugar estranho".

E que tu de uma forma sublime partilhaste.

Muitos parabéns

Beijinhos com carinho
BomFeriado

quinta-feira, novembro 30, 2006  
Blogger david santos said...

Não! Isto é um milagre! Esta MULHER não existe! Esta Isabel quer matar os seus leitores! Será, ela ser de outro mundo?
Eu não acredito! Ela tem ideias em tudo quanto é corpo e espirito.
O velho, ainda vai que não vai! Mas a ideia do cão! Bem! temos aqui um caso sério a escrever bem e a ter ideias inigualáveis.
Ó Isabel, Isabel!
Fantástico!
Esta história é verdadeira. É, em muitos casos, o dia a dia. Mas a forma e o sentido que lhe dás é arrasadora.
Parabéns.

quinta-feira, novembro 30, 2006  
Blogger eu... said...

lindo... bom feriado..

quinta-feira, novembro 30, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Olá Isabel,

O amor é mesmo um lugar cheio de estranheza... um sentimento tão lindo que por vezes se transforma em dureza da alma.
Deixo um pensamento meu:

"A Vida é uma passagem com pequenas aberturas de...felicidade!
{{coral}}"

Beijo
{{coral}}

quinta-feira, novembro 30, 2006  
Blogger jawaa said...

Mais uma história contada com o sabor que já sei identificar como teu, Isabel.
Comoveste-me outra vez.
És uma fantástica contadora de histórias!

sexta-feira, dezembro 01, 2006  
Blogger OLHAR VAGABUNDO said...

suspiro....tens o dom de me deixar assim...
beijo vagabundo

sexta-feira, dezembro 01, 2006  
Blogger Perola Granito said...

Depois de tao grande mensagem... bom fim de semana

sexta-feira, dezembro 01, 2006  
Blogger Luiz Carlos Reis said...

Querida,

Um ser tão frágil que jamais se ressentiu. A força inata da mulher num estado de completo abandono. Inicialmente pensei se tratar de uma histórias cuja protagonista tivesse o "Mal de Alzeimer", doença que degenera os neurônios com o passar do tempo. Mas no desenrolar da crônica, que me fascinou, constatei, nas entrelinhas uma certa denuncia aos maus tratos sofridos por muitas mulheres, ainda submissas, por conta dessa sociedade machista, intolerante e retrógrada.
Belo texto que reflete uma realidade que nunca é denunciada.
Minhas congratulações pelo belíssimo texto!

Aqui escreve-se bem e... muito bem por sinal!


Abraços para tí!

sexta-feira, dezembro 01, 2006  
Blogger P. Guerreiro said...

Preto no branco, como se costuma dizer. Real, tão real que até doi.
Excelente a forma como passaste esta experiência para o papel (ainda gosto de escrever primeiro em papel e imagino os outros fazendo o mesmo...Não ligues).
Tens coisas muito bonitas dentro de ti...E és sensivel...Tudo o que olhas se transforma em prosa, em histórias que partilhas com um prazer que se sente nas tuas palavras.
Tenho-te nos favoritos, visitar-te é um favor que faço a mim próprio.
Não sei se vou escrever sobre a porta, sobre o cão, mas porque te li, hoje vou escrever qualquer coisa...Pelo menos no papel...
Obrigado pela tua amizade.
Um excelente fim de semana para ti.

sexta-feira, dezembro 01, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Simplesmente lindo...Adorei! ;) Obrigado pelo carinho deixado no meu cantinho! Tem um bom feriado e um bom fim de semana! Beijo grande!

sexta-feira, dezembro 01, 2006  
Blogger Alberto Oliveira said...

... em forma de comment, posto já aqui:

... depois de esperar uma valente meia-hora e do dono da cadeira nem novas nem mandados, calculou que nesse dia os restos do almoço já eram. Restava saber se seria apenas nesse dia ou para sempre e aí, lá teria de procurar outro benfeitor. A vida de cão rafeiro não estava fácil, admitiu com um leve abanar de rabo...

óptimo fim de semana!

sexta-feira, dezembro 01, 2006  
Blogger Alberto Oliveira said...

... ah! a tempo: gostei muito do teu texto. Parabéns!

sexta-feira, dezembro 01, 2006  
Blogger bettips said...

Escreves duma maneira emocionante...não consigo sequer comentar este toque que se sente. Abç

sexta-feira, dezembro 01, 2006  
Blogger Alexandre said...

SUBLIME! O teu texto é perfeitamente SOBERBO!!! Escreves muito bem, estruturas muito as ideias e as sequências, parec e que nós leitores estamos lá na história!

Obrigado por partilhares connosco este teu dom.

Beijinhos e bom resto de fim-de-semana!

sexta-feira, dezembro 01, 2006  
Blogger Marina said...

Isabel, nem sei como comentar um texto destes...
Muito lindo!

Beijitos e bom fim de semana!

sexta-feira, dezembro 01, 2006  
Blogger Misantrofiado said...

Isabel, mesmo sendo este um dia de dores de cabeça e de olhos que mal consigo manter abertos, devo partilhar-te que nem foi com esforço que te li mais um conto ou neste caso, relato ou lá como se lhe aprouver chamar.
Acho que já te disse o que penso do teu blog e do engenho que possuis para escrever. Escrever até nem é tarefa árdua mas lidar com sentimentos através das palavras já tem mais que se lhe diga.
Incutiste neste texto um espectro de thriler/suspense onde tudo se concretiza no final - parabéns.
Eu sou um melodramático por natureza, frio e inacessivel. Assim me obrigou a vida e assim me construi... nesta fortaleza sólida que me faz parecer um rochedo.
Porém, força alguma me diminui o drama que me aflige, este de lidar comigo próprio num tempo que não tenho.
Felizmente ainda tive tempo para te descobrir a palavra. Estas e as que me deixas dirigidas - as quais não te saberei agradecer.
Por ti, continua... se alguma coisa ainda faz sentido, essa é a palavra.
Que longe ela te leve sempre, tal como a grandeza dos seus espaços feitos de silêncio. Silêncio que tão bem conheces e te faz acontecer.

sábado, dezembro 02, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Passei para ver o blogue, apreciar os artigos, admirar as fotografias, e o resultado é agradável, como sempre. Óptimo fim-de-semana.

sábado, dezembro 02, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Vida real de outrora..de hoje e, infelizmente de amanhã..

Tens a magia de arrebatar (fig), com os teus escritos..
Parabens

um abraço
intruso

sábado, dezembro 02, 2006  
Blogger mfc said...

Tanto estranho quanto possivelmente verdadeiro.
Dói que isto possa acontecer.
Vá-se lá compreender este estado de submissão que será tudo menos Amor.
O Amor é dual, tem que ser entendido nos dois sentidos!

sábado, dezembro 02, 2006  
Blogger Bruna Pereira Ferreira said...

Estranho e incerto, esse lugar do amor. Se calhar encontraste-o neste texto, não?
Lindo, como sempre.

Beijinhos,Isabel.
:)

domingo, dezembro 03, 2006  
Blogger Pierrot said...

Isabel...

Muito à frente, muito para lá de bonita esta história...
Genial a forma como pegaste no assunto e acima de tudo a forma como a acabaste.
Parabéns e um muito obrigado daqui
Bjos
Eugénio

domingo, dezembro 03, 2006  
Blogger david santos said...

Isabel, boa tarde.
Primeiro perdir-te desculpa por repetir a minha entrada dentro do espaço do mesmo texto. Não se deve fazer isso. Mas sei que me vais desculpar.
Segundo agradecer-te por participares e comentares o meu "PIANINHO DO MAR" que não é só meu é de toda a net.
Terceiro dizer-te que com a tua participação e a de todos os amantes da poesia, demos mais um destaque a esta área que parece arredada de muitos corações. Pois o "PIANINHO DO MAR" ESTÁ A SER CONSIDERADO o poema mais visitado e comentado de sempre na net. Espero, que com a partição de todos e de pessoas tão queridas como tu, eu venha a ajudar a poesia a ter o lugar que merece em todos os meios.
Um grande abraço e até sempre, minha Amiga Isabel.
David Santos

domingo, dezembro 03, 2006  
Blogger Delfim Peixoto said...

GOstei, como sempre, quer pelo conteúdo, quer pela forma...mas sobretudo, pela subtileza...
bjs
ah mudei de casa...outra vez~...

domingo, dezembro 03, 2006  
Blogger Estranha pessoa esta said...

Nem sei o que escrever...
Já vim aqui várias vezes..
Ler, sentir...

Só me ocorre dizer uma coisa:
Obrigado pela tua persistência, pelo teu olhar, pelos teus sentires.
Sê sempre!

Um abraço enorme, mesmo grande para ti.

segunda-feira, dezembro 04, 2006  
Blogger vida de vidro said...

Isabel, que arrepio o teu texto me causou! Por estar extraordinariamente escrito, por ser verdadeiro, por ir buscar ao mais fundo de nós a certeza de que o amor é o mais estranho e inexplicável dos sentimentos. De alguma forma, ler-te já me fez ganhar este dia. **

segunda-feira, dezembro 04, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Gostei muito.

quarta-feira, maio 30, 2007  

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