segunda-feira, maio 28, 2007

Ausente

Cada vez com menos disso a que chamam fé, distante de qualquer Deus, até do meu.
Ausente, hoje, de palavras minhas.
Ausente de mim até.
Estou longe. Na outra margem da outra margem.
Longe.
Ausente de mim evoco outras vozes.
Mais crédulas.
Ainda crentes num novo Deus.
Eu… eu…
Já não creio no novo sequer.
Muito menos em Deus.
Ausento-me.
Na outra margem da outra margem.
Mas não estou lá.
Nem sei onde é.

Evocação

Evocação
I
Não memorizo aldeias
Nem aldeões:
Meu cabelo ao vento
– lúcido, tardio –
Exibe o corte,
a ruptura
a outra margem;
A imagem destorcida em mim
Não é doce nem crédula:
Pus a vida acima da Era;
O corpo acima da cela;
Os pés acima do cavalo...
e, se assim não fosse,
aí sim, seria errado.

II
Mar. Terra. Cana. Terra-Seca:
Não é preciso ir muito,
para ser estranho...
Das entranhas do dia,nasço
– não se nasce do nada,
se surge do ambíguo.

Não tardo nem contento,contemplo;
E o chover não mais distrai
O piscar de olhos
– rebento do adeus
sem vestígios.

Ah, atordoar infantil!
Versos de outrora conjugados, lentos
Nada mudou...
ainda me sou,
rebentar violento.

III
Pernas acima da Terra.
Pó por cima de nós, dos sóis, dos séculos
(e não há outra ruptura
senão ser girassol!)
O cavalo segue abaixo, distante
Não é preciso estar acima, para estar melhor...
Não me abarco
E piso,
Como quem pisa um tapete, nuvens
Detendo nas mãos um telefone...
O que ferirá mais, senão a palavra?
Palavra dúbia.
Anti-prece.
Anti-deus.

IV
Contemplo. A chuva. O guarda-chuva. A náusea.
Nos olhos pardos, o passado pesa...
E há ferida: quanta dor inflama!
Quisera não ser eu, poeta ou passo;
Palácio erguido num confuso brio:
Meus sonhos são faces do céu que crio
Poemas ávidos, avós reversos......
e isso, ninguém sabe.

V
Na timidez, procuro-me só:
Assim sou no extenso vão da palavra!
Quisera ser morena, alva – viúva
Tudo menos poeta e colibri:

Pousar e ser única
– aldeã!
Talvez feliz.

VI
Campo, campina. Galo-de-Campina.
Há tanto, tantas lembranças mortas...
O verde sucumbiu aos olhos
Que, no chão, semeiam concreto.

Na outra margem,
lá, sempre lá,
Fico. Reservo. Esqueço...
Lanço ao rio o tonel
o túnel de meus anos.

Não hei de lembrar, como sempre.

VII
Padeço muito e lento,
muito lento.
Se chuvas, lágrimas, seres,
esvaem-se, algo fica...
Certas canções não sanam as lacunas do tempo;
Tempo-corpo, poema.

(Ah, se não fosse sopro, não fosse águia, cerveja...
se talvez flechas, não telefone...
se apenas mulher... não essa sina!)

VIII
Cruzar bares, mares, risos
E na outra margem
a palavra está...Cardíaca, a alma reclama
Seu desejo último– ávida, certa.

IX
Vivo;
Como isso não diz muito, adeus...
Sempre planícies por trás de serras
E rio entre montes; sigo.

Não responda o adeus
(nem a deus peço):
Sempre mais uma ponte e um riacho
E um cavalo para domar...

X
Só,
Mas há outra margem;
E, por ser ainda crédula,
Um novo deus

Virgínia Celeste Carvalho

"No meu centro"
Fotografia de Helena Isabel Ponce

15 Comments:

Blogger as velas ardem ate ao fim said...

Sinto me ausente de mim e sem vontade de voltar a acreditar que vale a pena renascer.

bjos

segunda-feira, maio 28, 2007  
Blogger bettips said...

Verbos de ti, para conjugar: eu vivo. Mais: eu penso. Dói: eu sou. Bj

terça-feira, maio 29, 2007  
Blogger Luis Carlos said...

Olá Helena,

Quem és tu?

Por onde andas?

Que pensas de ti?

Que sentes?

Que fazes?

Até já,
Luís Carlos

terça-feira, maio 29, 2007  
Blogger Pedro Branco said...

São crueis as palavras que brotam no escuro.
São crueis os ecos que nos adormecem ao ouvido.
São crueis todos esses momentos em verso puro
Com que me atormentas tudo o que sou e tenho sido...

São crueis os teus amores, os teus olhos as tuas paixões.
São crueis as silhuetas dos reflexos cortantes.
São crueis as verdades, o nervo dos turbilhões
Com que me perco em ti como hoje ou antes...

São crueis as voltas das correntes na foz.
São crueis os encontros perdidos ou apagados da memória.
São crueis todas as cores iluminadas em nós
Com que pintas a derrota com cor de vitória...

São crueis os montes dos céus crueis.
Os amores, as solidões, os desencantos.
Por isso, amor, pega nos teus pincéis
E pinta de novo todas as letras com que escreves os teus prantos!

terça-feira, maio 29, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Bom dia,
Mais uma vez que passo por este cantinho que considero fabuloso e fico maravilhado com tanta beleza de escrita, racionalidade de argumentos. e sobrutudo canto mui vivo que pensa e faz pensar, uma boa reflexão filosófica.Obrigado pela partilha, obrigado pela visita que me fizeste, obrigada por seres do clube que tem por fé a cor azul e branca

quarta-feira, maio 30, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Também me sinto ausente.
Entendo esse tipo de ausência bem.

Carla

quarta-feira, maio 30, 2007  
Blogger Titá said...

Maravilhada com as palavras aqui escritas, deixei a ausência para sentir a presença do que foi dito.
Bjs

quarta-feira, maio 30, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Acredita em Ti, na força que transmites pelo que escreves, isso de facto é e deverá ser a tua "Fé" e o teu "Deus", seja ele novo ou o Tal, em que tantos falam, mas sempre na hora da aflição.
Eu, pessoalmente acredito na minha força, essa é a minha fé e o meu deus, o resto são meras perdas de energia e divagações.

Cumps.
Maria
Kolmi

quarta-feira, maio 30, 2007  
Blogger P. Guerreiro said...

"Não tardo nem contento, comtemplo;
E a chuva não me distrai..."
Distante das palavras...Espero que não estejas distante de ti mesma, das tuas palavras...
Mesmo sem elas consegues encontrar nas dos outros o que pretendes dizer...Poderias dizer que era teu...Eu acreditava...
Pelo que te conheço (leio), nunca o farias...Já bastam todas essas mulheres que tu tão bem escreves.
Estejas onde estiveres espero as palavras nunca te abandonem.
Um abraço amigo!
Até sempre!

quarta-feira, maio 30, 2007  
Blogger Unknown said...

"Na outra margem da outra margem."
É isto estar à margem, Isabel?
Beijo.

quarta-feira, maio 30, 2007  
Blogger Maria said...

"Ausento-me.
Na outra margem da outra margem.
Mas não estou lá.
Nem sei onde é."

Angústia.....

Beijo

quinta-feira, maio 31, 2007  
Blogger Isabel said...

Daniel, não, não é isso que é estar à margem.

É estar na margem, sem no entanto estar à margem de nada.

Nunca estive à margem.

Na outra margem da outra margem é o local sem sítio para onde me ausento quando quero estar longe... tão longe que nem sei onde é... vou lá parar sem de facto lá estar.

A outra margem é um lugar visível, a outra margem da outra margem não.

Passa por lá um dia, se ainda não a conheces
Vais gostar.
É tão difícil ficar ausente deste cansaço que por vezes somos nós mesmos.

Não te sei dar a direcção mas é uma boa paragem, a outra margem da outra margem, para descansar destes nossos caminhos.

Deixa-te ir lá parar um dia se ainda não paraste por lá.

Seja como for lá nunca ninguém encontra ninguém pois lá nunca ninguém está de facto.

Ou não...

Isabel

quinta-feira, maio 31, 2007  
Blogger Unknown said...

Chamo/am-lhe "caverna"...

quinta-feira, maio 31, 2007  
Blogger Isabel said...

Não lhe posso chamar caverna.
As cavernas não tem margem.

Para estar na margem da outra margem é presiso que hajam margens.

A minha caverna chamo-lhe cama.
Lá escondo-me na escuridão e no silêncio.

Na margem da margem, há água, águas luz, árvores, sombra, brisa... até um pássaro ou outro ás vezes.

Gosto do que chamamos as coisas.
Lindas e cheias de belas ondulações são as palavras!

Brincos de palavras!

Beijo.

quinta-feira, maio 31, 2007  
Blogger António Melenas said...

Na outra margem da outra margem... quer dizer , para além do além. Quem entendia isto muito bem era a Florbela Espanca, quando falava em "ter fome e ter sede infinito/por elemo as manãs de ouro e de cetim", ou quando se referia a "saudades de saudades que não tenho/e sonhos que são sonhos dos que eu tive", Sim, julgo que andam m por aí as margens de outras margens deste belo sequencial poema. Mas Quem conhece verdadeiramente a alma dos poetas? Eu só sei uma coisa: que saboreeei cada verso com volúpia.
Beijinhos para ti

sexta-feira, junho 01, 2007  

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