A todos os gatos e à minha gata em especial
Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pêlo, frio no olhar!
De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?
"- Voa! – miou Zorbas estendendo uma pata e tocando-lhe ao de leve. Ditosa desapareceu da sua vista, e o humano e o gato temeram o pior. Caíra como uma pedra. Com a respiração em suspenso assomaram as cabeças por cima do varandim, e viram-na então batendo as asas, sobrevoando o parque de estacionamento, e depois seguiram-lhe o voo até às alturas, até mais para além do cata-vento de ouro que coroava a singular beleza de São Miguel. Ditosa voava solitária na noite de Hamburgo. Afastava-se batendo as asas energicamente até se elevar sobre as gruas do porto, sobre os mastros dos barcos, e depois regressava planando, rodando uma e outra vez em torno do campanário da igreja.- Estou a voar! Zorbas! Sei voar! – grasnava ela, eufórica, lá da vastidão do céu cinzento.O humano acariciou o lombo do gato.- Bem, gato, conseguimos – disse ele suspirando.- Sim, à beira do vazio compreendeu o mais importante – miou Zorbas.- Ah, sim? E o que é que ela compreendeu? – perguntou o humano.- Que só voa quem se atreve a fazê-lo – miou Zorbas.- Suponho que agora te estorva a minha companhia. Espero-te lá em baixo – despediu-se o humano. Zorbas permaneceu ali a contemplá-la, até que não soube se foram as gotas de chuva ou as lágrimas que lhe embaciaram os olhos amarelos de gato grande, preto e gordo, de gato bom, de gato nobre, de gato do porto.
"HISTÓRIA DE UMA GAIVOTA E DO GATO QUE A ENSINOU A VOAR"
Luis Sepúlveda
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