quinta-feira, fevereiro 14, 2008

A FLAUTA

- Isabel – pergunto a mim mesma – afinal o que estás tu a construir?
- Uma flauta. Respondo.
-E tens mesmo de a construir. Continuo.
-Tenho. É inevitável, é absolutamente necessário. Respondo.
- Mas não podias descansar um pouco? Insisto.
- Não. Há tarefas que não se podem interromper nunca, a construção da flauta é uma delas.
- Mas, Isabel – teimo eu – estás com um ar cansado. Devias abrandar. Aconselho eu.
- Não posso abrandar agora. Afirmo categoricamente.
- Mas porquê? Teimo em perguntar.
- Porque não.
-Isso é uma resposta idiota, devias era parar essa construção de uma vez por todas , deixa a flauta como está e pronto! Ela já está muito bem assim, ou não te chega nunca? Pergunto-me já zangada.
- Não terminarei nunca porque não me chegará nunca, é isso mesmo!
Depois calei-me.
Sabia que não iria mesmo terminar nunca de construir a minha flauta.

- Uma flauta? – Perguntam agora vocês.
- Sim, gatos à parte, aqui estou a construir a minha flauta. Respondo eu com um sorriso levemente irónico nos lábios.
Enlouqueceu de vez! Pensam vocês.
Talvez!
Mas primeiro leiam o que se segue, quiçá tão deliciados como eu li.



- Quero que saibas uma coisa. Não ando por ai a matar gatos só porque me dá na gana. Não sou uma pessoa assim tão perturbada a ponto de achar graça a isso – continuou ele – Não sou propriamente um diletante, com tempo para dar e para vender. Apanhar gatos é uma coisa que custa muito tempo e dá muito trabalho. Se ando a matar gatos é porque colecciono as suas almas, que depois utilizo para criar uma flauta especial. Para então poder tocar essa flauta e então deitar mão a almas ainda maiores. Para depois graças a essas almas construir uma flauta ainda maior. E assim por diante até conseguir dar forma a uma flauta maior sem igual no universo inteiro. Mas primeiro vêm os gatos. O primeiro passo em todo este projecto consiste em angariar as suas almas. Como em tudo na vida há uma ordem que tem de ser seguida. É sinal de respeito fazer as coisas pela ordem correcta. Quando se lida com as almas dos outros tem de ser assim. Não estou propriamente a lidar com ananases, nem com melões não te parece?

Todos nós temos a nossa missão na vida. É natural que assim seja. O mais natural é nunca teres ouvido falar de uma flauta feita com almas de gatos, pois não?
- Não.
-Evidentemente que não. Não é coisa que nos entre pelos ouvidos.
- Uma flauta que não se ouve?
- Exactamente. Claro está que eu consigo ouvi-la.

Se não conseguisse nada disto faria sentido. Mas estamos a falar de um som que as pessoas normais não são capazes de captar. E mesmo que tal aconteça, não se dão conta disso. Pode até acontecer que já tenham ouvido aquela sonoridade algures mas não têm consciência disso. Pode até acontecer que talvez – e digo talvez – tu sejas capaz de a ouvir. Se tivesse uma flauta agora aqui comigo podíamos fazer a experiência, mas infelizmente não tenho.
-Depois levantou o dedo como se tivesse acabado de se lembrar de uma coisa. – Na verdade, estava a preparar-me para cortar a cabeça aos gatos que arrebanhei. Está na hora da colheita.

(excerto retirado do livro de Haruki Murakami, “Kafka à beira mar”)



Também eu aqui me encontro neste estranho mundo construindo a minha flauta.
O meu instrumento.
O meu toque.
Mas não é tarefa fácil.
Construí-la já é muito difícil.
Tocá-la é um trabalho árduo e delicado.
Escutá-la tem tanto de sublime como de ensurdecedor.
Por vezes até dou por mim ansiando silenciá-la, imaginem!
A ela.
A esta minha flauta que construo há meia vida e levarei outra metade para terminar.
A minha flauta!
Como será o seu último som?
Faz parte da minha tarefa de construção, conseguir que o seu último som seja sublime.
Pleno de beleza e alegria.
Repleto de uma suavidade festiva.
Isso, uma suavidade festiva, assim como se de um fim de festa se tratasse.
Um som que seja eu.
Eu bonita e risonha com um lindo vestido de cores garridas, já meio amarrotado de tantos abraços, com maquilhagem já esborratada de tantos beijos, com as pernas já cansadas de tanto dançar, com o sexo já dorido de tanto amar, com a pele já enrugada de tanto viver.
Eu assim, ainda bela, com os lábios ainda a sorrir, os olhos ainda a brilhar.
Eu cansada, eu ofegante, eu ainda a arder eu ainda rodopiar.
Eu a rodopiar só uma vez mais e por fim deixar-me cair de braços e peito aberto sobre a cama soltando um prazeiroso suspiro de fim de festa.
Será esse último som da minha flauta: sublime como um suspiro de fim de festa.
Agora, hoje, pelos dias feitos tempo fora há que criar, tocar, escutar.
Há que continuar construindo.
Gatos a parte.
Há que deitar mão à minha própria alma.
Há que ir recolhendo os pedaços que se lançaram à solta por ai, ao que foram roubados pelos tempos esquecidos, os que fugiram com os dias sem memórias, os que desaparecem nas correntes dos desesperos ou se afogam lentamente nos rios de lágrimas pesadas.
Pedaços que se deixaram ficar lá no fundo dos poços escondidos.
Pedaços de alma minha que o coração estraçalhou.
Pedaços de alma minha que esta bela/ maldita vida foi devorando insaciável.
Deitar-lhes a mão.
Recolhê-los.
E voltar a perdê-los e procurá-los e recolhê-los de novo e não parar nunca este ciclo infindavelmente cansativo e deslumbrante.
A flauta!
Há que a continuar construindo.
Há que a continuar tocando.
Nunca a saberei tocar na perfeição.
Nunca saberei tocar na perfeição a minha própria sinfonia.
Nem quero.
A perfeição é o fim.
Atingi-la é acabar.
É tarefa completa.
É missão cumprida.
FIM.
THE END.
No toque da minha flauta ainda nada é perfeito.
Ainda desafino na minha sinfonia.
Está meia incompleta e a metade que completei sinto-a tão incompleta como a que ainda não comecei.
Ainda a toco mal.
Quero continuar a tocar.
E a escutar.
A minha imperfeita sinfonia.
A minha e outras.
Outras todas elas imperfeitas como a minha mas todas diferentemente imperfeitas.
É essa a maravilha da sinfonia das almas: sempre incompleta, sempre imperfeita.
Quero tentar escutar todas as flautas, todas as sinfonias, e quero guardar todas as que conseguir escutar dentro da minha própria sinfonia.
Quero que me escutem também.
Quero que me escute quem quiser.
Quero que me escute quem tentar.
Quero que me escute quem conseguir.
Mas quero que me escutem.
É a MINHA flauta.
Não é fácil escutá-la, eu sei!
Nem para mim.
Tantas são as vezes levo as mãos à cabeça e lhe suplico que pare de tocar.
Tantas são as vezes que em desespero lhe peço que se silencie.
Há até alturas em que desejo nunca a ter construído – mas mesmo nessas alturas ela é a minha flauta.
A minha única flauta, parte inseparável de mim, amada, amaldiçoada mas infinitamente minha.
Quando eu acabar ela acaba.
Mas eu não acabei.
E está na hora da colheita.
Deixo aqui um pedaço de minh´alma, um acorde da minha flauta, um pedaço da minha imperfeita sinfonia.
Escutam?
Voltarei um dia para recolher o que aqui deixei.
Agora tenho de ir correndo.
Está na hora da colheita.

Isabel


A flauta mágica
Marc Chagall