O dia em que deixei de falar
30-8-07 Aviso: Estou novamente de partida para Arraial d'Ajuda, o "meu" paraiso na Bahia de que já vos falei.
Podem ter saudades minhas, eu vou ter saudades vossas certamente.
Regresso a meio de Setembro, com histórias longas, das minhas, e fotografias de fazer inveja.
Fiquem bem.
Até breve.
A vida de todos nós está recheada de estórias.
Gosto de lembrar as estórias que fui vivendo ao longo desta vida, aquilo que todos nós somos e vamos sendo é fruto de um conjunto de muitas e variadas coisas, entre elas, das estórias da nossa vida.
No fim, é o conjunto das pequenas estórias da nossa vida que fazem a nossa grande história.
Quando eu terminei o liceu e entrei para a Universidade aconteceu-me por um período de vários meses deixar de falar.
Deixei de falar literalmente.
Só falava mesmo o básico: respondia às perguntas com um curto e manifesto sim ou não, agradecia com um simples obrigada e que eu me lembre além disto falava apenas o necessário para sobreviver numa cidade.
-Queria um bilhete de ida e volta.
-Uma sandes mista por favor.
Eu arriscaria a dizer, sem medo de a memória me estar a atraiçoar, que nada mais eu dizia.
Foi assim, neste estado de mudez, que cheguei ao meu primeiro dia de Universidade e foi assim que passei vários meses.
O facto de não querer mesmo falar não fazia com que não escutasse, pelo contrário, ouve-se bem melhor quando se fala pouco.
Também não fazia com que não estivesse bem atenta a tudo o que me rodeava, pelo contrário, o tempo que não passava a falar passava a analisar tudo o que acontecia à minha volta.
Fui, sei-o, um ser muito estranho, aos olhos dos outros, principalmente dos meus colegas de turma.
Como tudo o que é estranho, eu era, sei-o, um verdadeiro mistério por desvendar.
Algo que não entendiam, que não sabiam explicar, que os confundia.
Eu era uma espécie de provocação à curiosidade humana.
Era uma estranha aberração.
Gosto de lembrar as estórias que fui vivendo ao longo desta vida, aquilo que todos nós somos e vamos sendo é fruto de um conjunto de muitas e variadas coisas, entre elas, das estórias da nossa vida.
No fim, é o conjunto das pequenas estórias da nossa vida que fazem a nossa grande história.
Quando eu terminei o liceu e entrei para a Universidade aconteceu-me por um período de vários meses deixar de falar.
Deixei de falar literalmente.
Só falava mesmo o básico: respondia às perguntas com um curto e manifesto sim ou não, agradecia com um simples obrigada e que eu me lembre além disto falava apenas o necessário para sobreviver numa cidade.
-Queria um bilhete de ida e volta.
-Uma sandes mista por favor.
Eu arriscaria a dizer, sem medo de a memória me estar a atraiçoar, que nada mais eu dizia.
Foi assim, neste estado de mudez, que cheguei ao meu primeiro dia de Universidade e foi assim que passei vários meses.
O facto de não querer mesmo falar não fazia com que não escutasse, pelo contrário, ouve-se bem melhor quando se fala pouco.
Também não fazia com que não estivesse bem atenta a tudo o que me rodeava, pelo contrário, o tempo que não passava a falar passava a analisar tudo o que acontecia à minha volta.
Fui, sei-o, um ser muito estranho, aos olhos dos outros, principalmente dos meus colegas de turma.
Como tudo o que é estranho, eu era, sei-o, um verdadeiro mistério por desvendar.
Algo que não entendiam, que não sabiam explicar, que os confundia.
Eu era uma espécie de provocação à curiosidade humana.
Era uma estranha aberração.
Ainda por cima uma estranha aberração que estava ali, aos olhos de todos, dia após dia, mês após mês, sentada na secretária ou sozinha numa mesa do bar, e sempre invariavelmente muda.
Muda mês após mês!
Uma afronta à normalidade.
Uma afronta à curiosidade que permanecia por satisfazer.
Para cumulo , uma afronta sedutora, pois há algo inegavelmente sedutor no desconhecido, no misterioso, no inexplicável.
Sei também, que o factor de estranheza aumentava pelo facto da evidência não me apresentar como uma pessoa tímida. De facto até o sou. Mas não pareço nada. Mesmo nada. Sou como alguém que amo muito e que se auto intitula de tímido espalhafatoso.
É precisamente isso que eu sou, uma tímida espalhafatosa.
É muito comum, todos sabemos, encontrar nas Universidades aqueles alunos, feios, apagados, muito tímidos e muito calados. É tão comum que isso ninguém estranha. Limitam-se a fazer o julgamento precipitado do costume: é um totó! Ou é uma totó!
Muda mês após mês!
Uma afronta à normalidade.
Uma afronta à curiosidade que permanecia por satisfazer.
Para cumulo , uma afronta sedutora, pois há algo inegavelmente sedutor no desconhecido, no misterioso, no inexplicável.
Sei também, que o factor de estranheza aumentava pelo facto da evidência não me apresentar como uma pessoa tímida. De facto até o sou. Mas não pareço nada. Mesmo nada. Sou como alguém que amo muito e que se auto intitula de tímido espalhafatoso.
É precisamente isso que eu sou, uma tímida espalhafatosa.
É muito comum, todos sabemos, encontrar nas Universidades aqueles alunos, feios, apagados, muito tímidos e muito calados. É tão comum que isso ninguém estranha. Limitam-se a fazer o julgamento precipitado do costume: é um totó! Ou é uma totó!
Ou então usam o já corrente Americanismo: é um nerd!
E pronto! Resta ignorar completamente a criatura e tá feito! Não incomoda mais!
Mas eu incomodava.
Eu não era a feia, pelo contrário, era bonita.
Eu não era apagada, pelo contrário, já era vistosa por natureza e tinha o hábito de me vestir e me arranjar de forma mais vistosa ainda. Adorava mini saias. E usava-as tão minis que tinham um maxi efeito.
Resumindo: Era bonita, atraente, provocante e não parecia nada tímida.
Segundo os rótulos masculinos usados na época tudo me colocaria no tipo “ gaja gira e boa, provavelmente burra e que quer é festa”.
Segundo os rótulos femininos seria tipo “ gaja com a mania que é gira e boa, que se vê logo que é burra e que o que quer é festa”
Problema: O rótulo comigo falhava.
O rótulo falhava redondamente para ambos os lados.
Porque aqui a gaja ( eu ) era muda.
Aqui a gaja não falava com ninguém.
Se não falava com ninguém é porque não devia querer festa.
Então que raio de bicho estranho era aquele que não tinham visto ainda?
Curiosamente, este rótulo era o mesmíssimo utilizado também pelos professores e professoras com a consequência algo “chata” para uma aluna de Direito de ter todos os seus professores convencidos que é burra.
Ainda assim eu continuava sem vontade nenhuma de falar.
Parecia que quanto mais me apercebia do "sururu" à minha volta menos vontade eu tinha de falar.
Como o tempo sem falar se ia prolongando cada vez mais, apercebi-me que tinha chegado a um ponto que eu era o novo jogo da turma e que se faziam apostas a dinheiro acerca de quem seria a primeira pessoa a conseguir falar comigo.
Enojou-me, confesso.
A náusea silenciou-me mais ainda.
Sentia-me uma boneca, uma mulher feita brinquedo.
Lá estava eu, fechada numa caixa imaginária, contornada por luzinhas a acender e apagar. Faziam-se as apostas e logo de seguida cada apostador dava o seu melhor para ganhar.
Eu não era a feia, pelo contrário, era bonita.
Eu não era apagada, pelo contrário, já era vistosa por natureza e tinha o hábito de me vestir e me arranjar de forma mais vistosa ainda. Adorava mini saias. E usava-as tão minis que tinham um maxi efeito.
Resumindo: Era bonita, atraente, provocante e não parecia nada tímida.
Segundo os rótulos masculinos usados na época tudo me colocaria no tipo “ gaja gira e boa, provavelmente burra e que quer é festa”.
Segundo os rótulos femininos seria tipo “ gaja com a mania que é gira e boa, que se vê logo que é burra e que o que quer é festa”
Problema: O rótulo comigo falhava.
O rótulo falhava redondamente para ambos os lados.
Porque aqui a gaja ( eu ) era muda.
Aqui a gaja não falava com ninguém.
Se não falava com ninguém é porque não devia querer festa.
Então que raio de bicho estranho era aquele que não tinham visto ainda?
Curiosamente, este rótulo era o mesmíssimo utilizado também pelos professores e professoras com a consequência algo “chata” para uma aluna de Direito de ter todos os seus professores convencidos que é burra.
Ainda assim eu continuava sem vontade nenhuma de falar.
Parecia que quanto mais me apercebia do "sururu" à minha volta menos vontade eu tinha de falar.
Como o tempo sem falar se ia prolongando cada vez mais, apercebi-me que tinha chegado a um ponto que eu era o novo jogo da turma e que se faziam apostas a dinheiro acerca de quem seria a primeira pessoa a conseguir falar comigo.
Enojou-me, confesso.
A náusea silenciou-me mais ainda.
Sentia-me uma boneca, uma mulher feita brinquedo.
Lá estava eu, fechada numa caixa imaginária, contornada por luzinhas a acender e apagar. Faziam-se as apostas e logo de seguida cada apostador dava o seu melhor para ganhar.
O prémio era a boneca falar.
Mas o único som que se ouvia era a corneta anunciando mais um perdedor.
A boneca continuava sem falar.
Ninguém imaginava porque a boneca não falava nem nunca ninguém se lembrou de pensar nisso.
Quando sentimentos e vontades primárias como a curiosidade e a ânsia de ganhar gritam bem alto, poucos são os que se lembram prestar atenção a outro tipo de vozes menos ruidosas, vozes por vezes totalmente silenciosas.
Há certamente uma razão para coisas como uma estranha mudez, por exemplo.
A boneca continuava sem falar.
Ninguém imaginava porque a boneca não falava nem nunca ninguém se lembrou de pensar nisso.
Quando sentimentos e vontades primárias como a curiosidade e a ânsia de ganhar gritam bem alto, poucos são os que se lembram prestar atenção a outro tipo de vozes menos ruidosas, vozes por vezes totalmente silenciosas.
Há certamente uma razão para coisas como uma estranha mudez, por exemplo.
Com pequenas faltas de atenção, e entusiasmos irreflectidos podemos em muitas ocasiões da vida magoar muito alguém.
Podemos fazê-lo simplesmente porque nos estamos a divertir e nem reparamos no dano que a nossa diversão pode causar.
Não sei se a diversão dos meus colegas me magoava.
Não sei se a diversão dos meus colegas me magoava.
Sei que me nauseava.
Sei que me fazia viver num estado de náusea permanente.
Sei que não me julgava capaz de falar.
Sei que não falava porque tinha o choro entalado na garganta e me impedia de falar.
Sei que o meu silêncio era feito de lágrimas.
Sei que as lágrimas eram invisíveis, como as minhas palavras eram mudas e o meu vómito era seco.
Mas sei que em silencio eu falava e chorava e vomitava as entranhas e ninguém via.
Chorei muda, vários meses.
Chorei muda o duro contacto com uma realidade que se me entalou na garganta e com a qual eu não sabia viver.
Um dia falei.
Ninguém ganhou a aposta.
Ninguém me fez falar.
Falei sozinha.
Sem ninguém esperar um dia falei.
Engoli a realidade que como uma grande e dura espinha tinha espetada na garganta.
Chorei muda, vários meses.
Chorei muda o duro contacto com uma realidade que se me entalou na garganta e com a qual eu não sabia viver.
Um dia falei.
Ninguém ganhou a aposta.
Ninguém me fez falar.
Falei sozinha.
Sem ninguém esperar um dia falei.
Engoli a realidade que como uma grande e dura espinha tinha espetada na garganta.
Engoli-a e nesse dia falei.
Engoli-a e depois aos poucos fui-a transformando.
Larguei Direito 3 anos depois.
Engoli-a e depois aos poucos fui-a transformando.
Larguei Direito 3 anos depois.
Não quis viver a vida inteira com algo que tanto me tinha desiludido por mais bem sucedida que tivesse a certeza que poderia ter sido.
Larguei o curso e não me arrependo.
Estuda-se Direito de forma limitada e sem dar importância à sua essência: o conceito de JUSTIÇA.
Pratica-se Direito, tantas vezes, sem Direito sequer.
Não era para mim.
Como poderia ser para mim?
Aprendi dessa minha estranha fase muda que a realidade pode ser difícil de engolir.
Aprendi que temos direito ao silêncio.
Aprendi que devíamos ter o dever de respeitar os silêncios de todos e todos os tipos de silêncio.
Aprendi que não deveríamos ter o direito de julgar e colocar rótulos inadvertidamente sob pena dessa nossa irreflexão tornar a realidade cada vez mais injusta, mais difícil de tragar e engolir como o foi para mim levando-me à mudez.
Hoje escrevi sobre a minha mudez e doeu, se me pedissem para falar sobre ela creio que voltaria a emudecer.
E, todos me acham, tipo falador.
Anda o mundo enganado com o mundo.
Os rótulos nas pessoas do mundo estão erradamente colocados.
Não há DECOs para defender aqueles em quem o rótulo foi mal colocado e não corresponde à realidade.
Haveria que deixar de pôr rótulos nas pessoas e deixá-los apenas para as embalagens.
Não há lei para isso, cabe a cada um de nós individualmente respeitar a individualidade de quem nos rodeia.
Larguei o curso e não me arrependo.
Estuda-se Direito de forma limitada e sem dar importância à sua essência: o conceito de JUSTIÇA.
Pratica-se Direito, tantas vezes, sem Direito sequer.
Não era para mim.
Como poderia ser para mim?
Aprendi dessa minha estranha fase muda que a realidade pode ser difícil de engolir.
Aprendi que temos direito ao silêncio.
Aprendi que devíamos ter o dever de respeitar os silêncios de todos e todos os tipos de silêncio.
Aprendi que não deveríamos ter o direito de julgar e colocar rótulos inadvertidamente sob pena dessa nossa irreflexão tornar a realidade cada vez mais injusta, mais difícil de tragar e engolir como o foi para mim levando-me à mudez.
Hoje escrevi sobre a minha mudez e doeu, se me pedissem para falar sobre ela creio que voltaria a emudecer.
E, todos me acham, tipo falador.
Anda o mundo enganado com o mundo.
Os rótulos nas pessoas do mundo estão erradamente colocados.
Não há DECOs para defender aqueles em quem o rótulo foi mal colocado e não corresponde à realidade.
Haveria que deixar de pôr rótulos nas pessoas e deixá-los apenas para as embalagens.
Não há lei para isso, cabe a cada um de nós individualmente respeitar a individualidade de quem nos rodeia.
Não queremos um dia, sem sequer dar por isso, estar a contribuir para a mudez de alguém.
Pensem nisto um bocadinho agora.
E voltem a pensar de novo antes de julgar alguém.
Pensem nisto um bocadinho agora.
E voltem a pensar de novo antes de julgar alguém.
Não estou aqui para ensinar ninguém.
Só vos quis tocar.
Um toque no coração, na consciência, na alma, não importa onde.
Um toque... é apenas o que é esta minha estória.
Um toque...
Um toque...
Tocou?
Isabel
Fotografia de Katia Santos