segunda-feira, agosto 27, 2007

O dia em que deixei de falar

30-8-07 Aviso: Estou novamente de partida para Arraial d'Ajuda, o "meu" paraiso na Bahia de que já vos falei.
Podem ter saudades minhas, eu vou ter saudades vossas certamente.
Regresso a meio de Setembro, com histórias longas, das minhas, e fotografias de fazer inveja.
Fiquem bem.
Até breve.
A vida de todos nós está recheada de estórias.
Gosto de lembrar as estórias que fui vivendo ao longo desta vida, aquilo que todos nós somos e vamos sendo é fruto de um conjunto de muitas e variadas coisas, entre elas, das estórias da nossa vida.
No fim, é o conjunto das pequenas estórias da nossa vida que fazem a nossa grande história
.

Quando eu terminei o liceu e entrei para a Universidade aconteceu-me por um período de vários meses deixar de falar.
Deixei de falar literalmente.
Só falava mesmo o básico: respondia às perguntas com um curto e manifesto sim ou não, agradecia com um simples obrigada e que eu me lembre além disto falava apenas o necessário para sobreviver numa cidade.
-Queria um bilhete de ida e volta.
-Uma sandes mista por favor.
Eu arriscaria a dizer, sem medo de a memória me estar a atraiçoar, que nada mais eu dizia.
Foi assim, neste estado de mudez, que cheguei ao meu primeiro dia de Universidade e foi assim que passei vários meses.
O facto de não querer mesmo falar não fazia com que não escutasse, pelo contrário, ouve-se bem melhor quando se fala pouco.
Também não fazia com que não estivesse bem atenta a tudo o que me rodeava, pelo contrário, o tempo que não passava a falar passava a analisar tudo o que acontecia à minha volta.
Fui, sei-o, um ser muito estranho, aos olhos dos outros, principalmente dos meus colegas de turma.
Como tudo o que é estranho, eu era, sei-o, um verdadeiro mistério por desvendar.
Algo que não entendiam, que não sabiam explicar, que os confundia.
Eu era uma espécie de provocação à curiosidade humana.
Era uma estranha aberração.
Ainda por cima uma estranha aberração que estava ali, aos olhos de todos, dia após dia, mês após mês, sentada na secretária ou sozinha numa mesa do bar, e sempre invariavelmente muda.
Muda mês após mês!
Uma afronta à normalidade.
Uma afronta à curiosidade que permanecia por satisfazer.
Para cumulo , uma afronta sedutora, pois há algo inegavelmente sedutor no desconhecido, no misterioso, no inexplicável.
Sei também, que o factor de estranheza aumentava pelo facto da evidência não me apresentar como uma pessoa tímida. De facto até o sou. Mas não pareço nada. Mesmo nada. Sou como alguém que amo muito e que se auto intitula de tímido espalhafatoso.
É precisamente isso que eu sou, uma tímida espalhafatosa.
É muito comum, todos sabemos, encontrar nas Universidades aqueles alunos, feios, apagados, muito tímidos e muito calados. É tão comum que isso ninguém estranha. Limitam-se a fazer o julgamento precipitado do costume: é um totó! Ou é uma totó!
Ou então usam o já corrente Americanismo: é um nerd!
E pronto! Resta ignorar completamente a criatura e tá feito! Não incomoda mais!
Mas eu incomodava.
Eu não era a feia, pelo contrário, era bonita.
Eu não era apagada, pelo contrário, já era vistosa por natureza e tinha o hábito de me vestir e me arranjar de forma mais vistosa ainda. Adorava mini saias. E usava-as tão minis que tinham um maxi efeito.
Resumindo: Era bonita, atraente, provocante e não parecia nada tímida.
Segundo os rótulos masculinos usados na época tudo me colocaria no tipo “ gaja gira e boa, provavelmente burra e que quer é festa”.
Segundo os rótulos femininos seria tipo “ gaja com a mania que é gira e boa, que se vê logo que é burra e que o que quer é festa”
Problema: O rótulo comigo falhava.
O rótulo falhava redondamente para ambos os lados.
Porque aqui a gaja ( eu ) era muda.
Aqui a gaja não falava com ninguém.
Se não falava com ninguém é porque não devia querer festa.
Então que raio de bicho estranho era aquele que não tinham visto ainda?
Curiosamente, este rótulo era o mesmíssimo utilizado também pelos professores e professoras com a consequência algo “chata” para uma aluna de Direito de ter todos os seus professores convencidos que é burra.
Ainda assim eu continuava sem vontade nenhuma de falar.
Parecia que quanto mais me apercebia do "sururu" à minha volta menos vontade eu tinha de falar.
Como o tempo sem falar se ia prolongando cada vez mais, apercebi-me que tinha chegado a um ponto que eu era o novo jogo da turma e que se faziam apostas a dinheiro acerca de quem seria a primeira pessoa a conseguir falar comigo.
Enojou-me, confesso.
A náusea silenciou-me mais ainda.
Sentia-me uma boneca, uma mulher feita brinquedo.
Lá estava eu, fechada numa caixa imaginária, contornada por luzinhas a acender e apagar. Faziam-se as apostas e logo de seguida cada apostador dava o seu melhor para ganhar.
O prémio era a boneca falar.
Mas o único som que se ouvia era a corneta anunciando mais um perdedor.
A boneca continuava sem falar.
Ninguém imaginava porque a boneca não falava nem nunca ninguém se lembrou de pensar nisso.
Quando sentimentos e vontades primárias como a curiosidade e a ânsia de ganhar gritam bem alto, poucos são os que se lembram prestar atenção a outro tipo de vozes menos ruidosas, vozes por vezes totalmente silenciosas.
Há certamente uma razão para coisas como uma estranha mudez, por exemplo.
Com pequenas faltas de atenção, e entusiasmos irreflectidos podemos em muitas ocasiões da vida magoar muito alguém.
Podemos fazê-lo simplesmente porque nos estamos a divertir e nem reparamos no dano que a nossa diversão pode causar.
Não sei se a diversão dos meus colegas me magoava.
Sei que me nauseava.
Sei que me fazia viver num estado de náusea permanente.
Sei que não me julgava capaz de falar.
Sei que não falava porque tinha o choro entalado na garganta e me impedia de falar.
Sei que o meu silêncio era feito de lágrimas.
Sei que as lágrimas eram invisíveis, como as minhas palavras eram mudas e o meu vómito era seco.
Mas sei que em silencio eu falava e chorava e vomitava as entranhas e ninguém via.
Chorei muda, vários meses.
Chorei muda o duro contacto com uma realidade que se me entalou na garganta e com a qual eu não sabia viver.
Um dia falei.
Ninguém ganhou a aposta.
Ninguém me fez falar.
Falei sozinha.
Sem ninguém esperar um dia falei.
Engoli a realidade que como uma grande e dura espinha tinha espetada na garganta.
Engoli-a e nesse dia falei.
Engoli-a e depois aos poucos fui-a transformando.
Larguei Direito 3 anos depois.
Não quis viver a vida inteira com algo que tanto me tinha desiludido por mais bem sucedida que tivesse a certeza que poderia ter sido.
Larguei o curso e não me arrependo.
Estuda-se Direito de forma limitada e sem dar importância à sua essência: o conceito de JUSTIÇA.
Pratica-se Direito, tantas vezes, sem Direito sequer.
Não era para mim.
Como poderia ser para mim?
Aprendi dessa minha estranha fase muda que a realidade pode ser difícil de engolir.
Aprendi que temos direito ao silêncio.
Aprendi que devíamos ter o dever de respeitar os silêncios de todos e todos os tipos de silêncio.
Aprendi que não deveríamos ter o direito de julgar e colocar rótulos inadvertidamente sob pena dessa nossa irreflexão tornar a realidade cada vez mais injusta, mais difícil de tragar e engolir como o foi para mim levando-me à mudez.
Hoje escrevi sobre a minha mudez e doeu, se me pedissem para falar sobre ela creio que voltaria a emudecer.
E, todos me acham, tipo falador.
Anda o mundo enganado com o mundo.
Os rótulos nas pessoas do mundo estão erradamente colocados.
Não há DECOs para defender aqueles em quem o rótulo foi mal colocado e não corresponde à realidade.
Haveria que deixar de pôr rótulos nas pessoas e deixá-los apenas para as embalagens.
Não há lei para isso, cabe a cada um de nós individualmente respeitar a individualidade de quem nos rodeia.
Não queremos um dia, sem sequer dar por isso, estar a contribuir para a mudez de alguém.
Pensem nisto um bocadinho agora.
E voltem a pensar de novo antes de julgar alguém.
Não estou aqui para ensinar ninguém.
Só vos quis tocar.
Um toque no coração, na consciência, na alma, não importa onde.
Um toque... é apenas o que é esta minha estória.
Um toque...
Tocou?

Isabel
Silêncio
Fotografia de Katia Santos

terça-feira, agosto 14, 2007

Arraial d'Ajuda

Tentando descalçar a alma e o coração
Vim do Brasil.
Vim de uma terrinha maravilhosa chamada Arraial d’ Ajuda. De tudo o que trouxe comigo e tudo o que deixei ficar, trouxe dentro de mim uma gigantesca vontade de voltar.
Este local que me tocou de tantas formas, fica no Nordeste Brasileiro, na Baia, ali mesmo ao lado de Porto Seguro.
É só atravessar o Rio Buranhém de balsa e lá estamos nós, numa espécie de paraíso com coqueiros, bonitas praias de areia branca, mar de todos os tons de azul e verde, extensos mangais, redes penduradas nas varandas das casas coloridas, tão coloridas quanto as gentes daquela terra. Este colorido, evidente logo ao primeiro olhar, não vem só da enorme mistura de raças e de culturas que existe em Arraial, esta cor é feita também de um colorido interior, que vem da alegria que se vê estampada no rosto de quem ali vive.
Em Arraial a vida vive-se!
Na presença da vida realmente vivida apercebemo-nos de quão raro é, nos nossos dias, encontrar gente vivendo a vida verdadeiramente.
Ali está-se e deixa-se estar, é-se e deixa-se ser, ali conhece-se e dá-se a conhecer.
Ali tudo se mistura, as culturas, as idades, as raças, os homens, as mulheres, os estilos, as artes, os sons, os credos e principalmente misturam-se os sorrisos, criando um povoado que é por si só uma celebração à vida como ela devia ser: vivida alegremente e sem pressas.
Ali a vida acontece mais, porque acontece mais devagar, porque por lá há tempo para a vida acontecer.
Ali há tempo para tudo, , há tempo para mais uma conversa, para beber mais um copo, para fazer mais um amigo, para mais um sorriso, para mais um abraço.
Ali há até tempo para simplesmente deixar o tempo passar. ali o que não há é medo de não ter tempo.
Ali não há medo de perder o comboio ou o metro, nem de ficar parado no trânsito, ou de estar num lugar sem rede e não conseguir telefonar avisar que se chegou fora do tempo.
Em Arraial o tempo não parou, o tempo não corre, o tempo anda lentamente apreciando com tempo os momentos de cada tempo.
Sente-se no Arraial que tudo e todos tem lugar.
Eu senti, mas a acreditar no que me disse uma Baiana lá da terra entendida nessas coisas, não é bem assim, “Aqui tem lugar para todos os que a terra abraça” explicou-me ela enquanto fortemente me abraçava.
“Se a terra não te abraçar o melhor é partires” continuou ela, mntendo forte o abraço, tão forte que sentia apertar-me o coração.
Aquela terra tão pequenina é terra de longos braços, isso eu sei.
Sei porque senti. Fui abraçada até me estalarem os ossos e o coração se me derreter.
Fui abraçada pela terra, por essa Baiana e por muita daquela gente boa e esse abraço, forte, sincero, humilde e sorridente é o que me vai fazer lá voltar.
Vou voltar daqui a poucos dias e por mim deixava-me ficar por lá.
Lá eu caibo.
Lá gente como eu encaixa na perfeição.
Lá eu sorrio, ando mais devagar, converso e uso as palavras, construo frases sem ser através da escrita, lá também falo, falo para dizer coisas e há quem me ouça e se interesse pelo que tenho para dizer, Lá também ouço muito, ouço de tudo, ouço os pássaros, o mar, as gargalhadas, o som da música, as vozes, as conversas, ouço atenta e calmamente, sem esforço para tentar escutar por entre o ruído infernal dos carros, dos apitos da pressa ou dos gritos da impaciência.
Lá ouve-se tão bem que se conseguem ouvir os corações em cada sorriso, que se consegue escutar a alma em cada mão estendida.
E são tantas as mãos estendidas.
Lá a entreajuda é uma verdade e não apenas uma bonita palavra com um bonito significado.
As mãos estendem-se para ajudar, ajudam a sorrir, e a estas mãos que se nos estendem lá chama-se "amigos".
Amigos lá há muitos, muitos e bons, lá em cada esquina há um amigo como em tempos cantava o nosso Zéca.
Se isto não é viver, então o que é?
Se não é isto que nos faz sorrir, então o que é?
E como se faz para caber?
Como é que a gente faz para nos tornar-mos “ordinary people”?
Perguntava-me uma amiga, uma amiga muito especial, minha alma paralela.
Respondi-lhe intuitivamente: “Descalçamo-nos”
Não precisamos descalçar os sapatos, os sapatos não nos prendem os pés, os sapatos por vezes até nos ajudam a caminhar.
Descalçamos a alma e o coração.
Sem saltos, sem solas, sem medidas, sem apertos, sem atilhos, sem atacadores, de alma e coração descalços, humildes, livres e iluminados por um sorriso aberto.
“Sorria está na Baia!”
“Está legal fique no Arraial.”, dizem por lá.
Eu não fiquei, não pude, não estou ainda suficientemente descalça.
Vim mas vou lá voltar.
Vou voltar cada vez mais descalça.
E um dia quem sabe totalmente descalça lá fique, a viver com verdade e a sorrir vivamente para a vida.

Helena Isabel Ponce
Eu e Carolina dançando no Beco das cores
Fotografia do Miguel trabalhada a cor também pelo Miguel