quinta-feira, novembro 30, 2006

Estranha forma de amar

Eugénio Rodrigues ( Pierrot) fez uma proposta original, interessante e irrecusável para quem gosta de escrever histórias :
"Lembrei-me de vos propor que postassem vocês o texto que quisessem, título incluído, bastando que para isso vos deixasse esta foto para que vos servisse de mote. Tomem como referência a porta da-casa-de-ninguém, a cadeira que é de não-sei-quem, o cão que pelo asgar se deve chamar Faísca, etc e coisa e tal. O que quiserem... (.....)"
Esta é a minha história:
O amor é um lugar estranho

Chegou a um daqueles sítios considerados, no mínimo, tenebrosos, chamados asilos.
Era um asilo de velhos.
Diz-se que a excepção confirma a regra e este era um desses casos.
Apesar de ser um asilo nada tinha de tenebroso.
Era um palácio antigo, com extensos e bem cuidados jardins, mantendo toda a sua fachada exterior e o interior devidamente adaptado ao fim a que se destinava: proporcionar tratamento e alojamento a velhos doentes e desamparados.
Ela não era velha.
Mas estava doente, muito doente.
E desamparada, muito desamparada.
Ali encontrou os cuidados de saúde que necessitava.
Encontrou o carinho, a segurança e o apoio que já se esquecera à muito do que significavam.
Chegou lá sem falar.
Com o corpo encarquilhado como um papel amachucado e pisado com força.
Não andava.
Não se sentava.
Não se mexia.
Nela nada tinha movimento.
Nem o olhar.
Parado e fixo num ponto que ninguém, a não ser ela, sabia qual era.
(saberemos depois)

Chegou lá vinda de um sótão.
O sótão de uma casa.
A casa desta foto.
Um sótão de meio metro de altura.
Onde uma vez por outra lhe deixavam comida.
Dividia o pouco espaço existente com alguns ratos.
Seus companheiros.
Sua única companhia.
Dava-lhes comida.
Por vezes a comida era pouca.
Por vezes deixavam-na vários dias sem alimento.
Os seus companheiros não gostavam nada quando isso acontecia.
Quando faltava a comida eles comiam-na a ela.
Não muito.
Apenas um pouco.
Só uma dentada aqui outra ali.
A prova é que ela estava viva.

Quem a colocou naquele sótão vários anos foi o marido.
Quem deu sinal de alerta foram os vizinhos.
Estranhamente apenas ao fim de vários anos.
Mais estranhamente ainda, não foi porque dessem pela sua falta.
Foi o cheiro.
O que lhes chamou a atenção foi o cheiro nauseabundo que vinha da casa .

Antes disso vivia naquela casa, submissa e feliz.
Ela.
O adorado marido.
E um cão.
Ela achava que era feliz.
O cão era feliz.
O marido não era nada.
Ela sentia-se verdadeiramente satisfeita com a vida que tinha.
Tinha tudo.
Um marido que amava profundamente.
Um cão meigo, carinhoso, fiel, que a olhava com olhos de mel
mostrando sem pudor todo o amor e devoção que nutria pela dona.
Quando não estava a cozinhar, a limpar a engomar a esfregar
ou a cumprir os seus deveres de esposa satisfazendo os desejos físicos do marido, estava no alpendre da casa, afagando o cão retribuindo-lhe com mimo o mel que ele lhe oferecia com o olhar.

O marido um dia fartou-se dela.
Guardou-a no sótão, como um objecto velho que já não se quer usar.
Ela lá ficou.
Obediente.
Sem um grito.
Sem um gemido.
Sem um ai.
Ficou onde ele a colocou.
Deixou-se ali ficar silenciosa, inerte, aparentemente meia morta.
Ficou lá vários anos.

Depois de descoberta pela vizinhança o carinhoso marido transferiu-a do sótão para o tal asilo para velhos.
Ela lá ficou.
Colocada onde ele a colocou.
Mais uma vez.
E ali se deixou ficar.

No asilo foi melhorando.
Muito lentamente, mas foi melhorando.
Chegou a conseguir sentar-se numa cadeira de rodas.
Todos se esforçavam por ela, todos menos ela.
Ela limitava-se a ali se deixar estar.
Aparentava estar morta por dentro.
Não se conseguia que dissesse uma palavra.
Tentou-se tudo.
Todos os temas.
Menos um : o marido.
O tema era proibido, obviamente, por medo de a fazer entrar em choque.
Assim tinha sido aconselhado por todos os psicólogos, e psiquiatras que continuamente a observavam.
Um dia uma miúda nova que por vezes lá fazia voluntariado perdeu a cabeça e levada pela esperança e pelo desespero de tentar, tentar e não conseguir arrancar-lhe uma única palavra arriscou.
Arriscou o mais arriscado.
Arriscou o mais proibido.
Disse a palavra proibida: marido

Foi nesse momento que o milagre aconteceu.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas.
Não meus amigos, não foram lágrimas de tristeza.
Foram lágrimas de ternura e de saudade.
Na face, outrora inexpressiva, desenhou-se um sorriso.
Não meus amigos, não foi um sorriso de ironia.
Foi um sorriso de alegria.
Toda ela se encheu de brilho.
Não meus amigos, não foi um brilho de raiva.
Brilhou de amor, de paixão.

E falou.
Falou para pedir que ele a fosse ver.

Ele foi.

Depois da curta visita dele ela iniciou os tratamentos com vontade.
Começou a falar.
Nele
No cão
Em voltar para casa.

Ele fazia o favor de ir lá de vez em quando.
E nesses dias ela resplandecia.
Ele por vezes faltava à tão esperada visita e ela morria de novo.
Renascia quando ele voltava.

A casa onde moravam é a da foto.
O sótão é naquela casa.
O cão é o da foto e vive à porta: espera o regresso da dona e recusa viver no mesmo espaço que o animal da casa.
Ela chama-se Dulce.
O cão é o Fiel
O marido não merece nome.
Não é gente.
Não é pessoa.
Não é humano.
Apenas mais um canalha que o sistema permite que ande à solta.
O ponto onde ela fixava o olhar era a memória da imagem dele.
Esta história é verdadeira.
Apenas os nomes estão alterados.
Apenas a casa não era a da foto.
Apenas o cão não era o da foto.
A miúda cheia de esperança que lhe arrancou a primeira palavra era eu.

O amor é mesmo um lugar estranho.

Isabel

Fotografia de Rosalina Afonso

terça-feira, novembro 28, 2006

Gaivotas

As gaivotas que me ensinaram a voar
Há dias em que algo me roí cá por dentro.
Há dias em que este roer faz um barulho ensurdecedor.
Há dias em que este roí aqui, roí ali, começa por ser uma moinha e acaba por se tornar numa dor quase insuportável.
Nesses dias agito as minhas asas.
Primeiro me recordar que sei voar.
Depois de avivada a memória é simples: Voo.
Voo.
Voo por ai.
Hoje vou voar até que as asas me doam.

Ultimamente tenho pensado muito nos inícios e nos fins.
Em como os inícios são consequência directa ou indirecta de um fim que o antecedeu.
Em como os fins dão origem a inícios.

Deixo a mente recuar à minha infância.
Gosto destas memórias de miúda.
Gosto da sensação de calor, conforto e protecção em que me envolvem.
Muitas não são memórias minhas.
Eu era demasiado pequena para me lembrar.
São memórias de memórias de minha mãe.
Memórias que com carinho ela guardou para um dia me contar.

Contou-me que um dia me levou a Cacilhas e parámos junto ao cais para eu poder ver os barcos e o rio.
Eu era ainda muito pequenina. Não sei precisar a idade mas diz a minha mãe que ainda tinha dificuldade em construir as frases.
Lá ficámos olhando o rio.
Eu com os olhos muito abertos absorvendo toda a paisagem.
Ela segurando a minha mão
Desse dia, na minha memória, ficou apenas algo parecido com uma sensação de liberdade na alma, julgo que provocada pela visão da água e das gaivotas esvoaçando como se partilhassem o céu e o mar.
Tudo o resto me contou minha mãe com um brilhozinho de orgulho no olhar.
Contou-me que em silêncio me dediquei a absorver sofregamente tudo o que me rodeava.
Como se sorvesse a paisagem em largos tragos.
Depois puxei-lhe pela saia e disse.

- As gaivotas abrem uma porta para o mar!

Olhou-me inchada de espanto e nunca mais se esqueceu deste episódio.
Nem se esqueceu de mo contar.
Estranhamente, ou não parece ter sido uma das minhas primeiras frases completas:

- As gaivotas abrem uma porta para o mar!

Esse dia foi um dia de início.
Creio, ter sido o dia em que ganhei asas.
Quis voar, seguindo as gaivotas.
Quis acompanhá-las abrindo portas.
Quis tanto, que ganhei asas.
Ganhei asas e voei.
Foi o meu primeiro voo a solo.
Sem mãe nem pai.
Só eu as gaivotas sobrevoando o rio.
Foi o início de muitos voos.
Esse dia foi tambem um dia de fim.
Fim do meu tempo integralmente passado no ninho.
Passei a ir e vir.
Ora ia, abrindo as asas ainda pequenas, até onde a curiosidade e a alma já esfomeada me levavam.
Ora vinha, cansada, feliz, buscando calor, alimento, protecção.
Com o tempo os regressos foram-se reduzindo.
Com o tempo foram-se também tornando mais curto o tempo de estadia no ninho.
Regressava quando me faltava a força nas asas.
E ficava até a recuperar.
As asas tinham-se tornado maiores, mais robustas.
Eram fortes e enérgicas, ágeis.
Movidas pela vontade de alcançar.
Movidas pelo desejo de conhecer.
Tornaram-se asas poderosas.
Queriam voar.
Voar.
Simplesmente voar.

Naquele primeiro voo abrira portas para o mar.
Muitas mais quis abrir.
Muitas mais se abriram.
Abriram-se portas de mais mares
Abriram-se portas de caminhos
Abriram-se portas do pensamentos
Abriram-se portas do conhecimento
Abriram-se portas de coragem
Abriram-se portas de vontades
Abriram-se portas de ser
Abriram-se portas de permanecer
Abriram-se portas de encontrar
Abriram-se portas de amar
Abriram-se portas de dar
Abriram-se portas de partilhar
Abriram-se portas de gentes
Abriram-se portas de mundos
Muitas, muitas mais portas se abriram.

Nesse dia em que disse:

- As gaivotas abrem uma porta para o mar!

Nesse dia em que ganhei as primeiras asas.
Nesse dia em que fiz o primeiro voo.
Nesse dia em que abri a primeira porta: a do mar (que era rio e eu não sabia)
Nesse dia ainda desconhecia:

Que as portas também se fecham.

Que, nascer, voar, e morrer são os mais solitários dos actos.

Que enquanto o ninho existir, por mais fortes e poderosas que sejam as nossas asas, a ele regressaremos sempre, cada vez mais, buscando o mesmo que buscávamos quando as nossas pequenas e frágeis asas nos nasceram: calor, protecção, alimento, força e a saliva do amor incondicional lambendo-nos as feridas ganhas nas longas viagens.

- As gaivotas abrem uma porta para o mar!

As gaivotas ensinaram-me a voar.
A abrir portas.
A não ter medo da solidão.

E são apenas gaivotas.
Isabel

"À conquista do mundo"
Miguel Afonso

segunda-feira, novembro 27, 2006

Mario Cesariny foi de viagem

Estação

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça
Mario Cesariny
Apareceram os dois.
Ele chegou, ela já tinha chegado.
Ele foi espera-la, ela já estava à espera dele.
O altifalante dizia que o comboio iria chegar à hora certa.
Eles dois chegaram mais cedo.
Para se conhecerem.
Sentaram-se num banco da estação.
Ele e ela, finalmente encontrados, esperando o comboio
Falaram da vida, contaram histórias, riram e choraram, disseram poemas,
lembraram os desencontros, ansiaram a viagem.
Ele e a morte.
Ele disse que se sentia cansado.
Ela segurou-lhe a mão.
Ela olhou para o relógio da estação e disse que estava quase na hora.
Ele respirou fundo e encostou a cabeça no ombro dela.
Sossegou.
Ela tinha um cheiro doce.
E o calor da mão dela sobre a sua sabia-lhe bem.
O comboio chegou silencioso.
O comboio chegou vazio.
Ela levantou-se estendeu-lhe a mão e ajudou-o a subir as escadas.
O grande relógio da estação marcava a hora certa.
Hora de partir.
Ela disse: Vem!
Ele respondeu: Vou!
Sentaram-se num banco de dois lugares.
O único banco do comboio.
Sentaram-se bem juntinhos
Ele acendeu um cigarro.
Ela olhou-o e sorriu.
Não era agora que ia começar a seguir as regras não achas? – Perguntou ele afirmando.
Ela sorriu de novo.
Ele sorriu também.
O comboio ia partir.
A viagem ia começar.
Uma nova viagem.
Mário Cesariny partiu de mão dada com a morte.
Juntos.
Partiram sorrindo.

Na estação ficou o silêncio.
O relógio continuou marcando as horas.
Cada tic-tac uma lágrima nossa.
Pena de nós que ficamos com um pouco menos dele.
Uma lágrima e um sorriso
Um sorriso de amor ao homem poeta
ao poeta homem

( Mário apanho uma beata do chão e enquanto me curvo, penso em ti)
Isabel

"O separador"
Mario Cesariny

sexta-feira, novembro 24, 2006

Silêncio

Hoje decidi aqui publicar um texto que considero brilhante, tem tudo para que possa assim ser classificado: alem proporcionar momentos de leitura agradáveis e até divertidos, oferece também um conjunto de informações que estou certa a maioria de nós desconhece. É um texto provocador por inevitavelmente nos obrigar a reflectir sobre conceitos com que nos considerávamos familiarizados acabando por ter de assumir perante nós próprios a nossa total ou parcial ignorância.
Eu, amante confessa das palavras, fiquei rendida perante este texto.
Tantas, mas tantas vezes usei a palavra “silêncio “ sem saber o que dizia.
Eu, amante confessa do silêncio, fui destroçada por este texto.
Afinal amava profundamente algo que desconhecia.
Este texto é um assumir de ignorância, e ao mesmo tempo um exercício de humildade que quis e considerei importante partilhar convosco.



Pedi autorização ao meu amigo Vítor Rua, autor deste texto que me deixasse publicá-lo aqui para vosso deleite.
Espero que gostem tanto como eu gostei.
O Vítor Rua é compositor, músico, produtor, videasta, um verdadeiro estudioso da música e um nome incontornável panorama musical e artístico contemporâneo e ainda escreve textos brilhantes como este.
Em 1980, funda o grupo Rock G.N.R.
Em 1982 foi co-fundador de TELECTU (com Jorge Lima Barreto).
Neste seu trabalho com Telectu encontrou-se com grandes figuras internacionais da improvisação (Elliott Sharp, Chris Cutler, Jac Berrocal, Carlos Zíngaro, Jean Sarbib, Louis Sclavis, Ikue Mori, Sunny Murray, Paul Rutherford, Evan Parker, Barry Altschul, Giancarlo Schiaffini), afirmando-se como experimentalista e poliartista.
Intérpretes como Daniel Kientzy, John Tilbury, Frank Abbinanti, Peter Bowman, Kathryn Bennetts, Ana Ester Neves, gravaram e/ ou interpretaram obras suas em concertos e festivais nacionais e internacionais.
A musicologia na era do porquinho Babe
NOTA:
pb1= porquinho babe I
pb2= porquinho babe II
me= meta

(pB1 e pB2 encontram-se em casa do primeiro jogando uma partida de xadrez)

pB1: Hum, você hoje está a jogar excelentemente meu caro.

pB2: É verdade. Sinto-me bastante concentrado. Deve ser deste agradável silêncio.

pB1 levanta-se

pB1: Peço desculpa por interromper, mas vou até á porta pois tocou a campainha.

pB2: Campainha? Não ouvi nenhuma campainha…

pB1 não ouve este último comentário, pois encontra-se já abrindo a porta da entrada de sua casa

pB1: Mas que agradável surpresa: o nosso querido Meta Eu.

mE: Resolvi fazer uma pausa no meu metaconto e vir fazer uma visita á casa de um amigo onde tenho sempre enriquecedores diálogos e estimulantes ideias, isto claro para não falar da sua exótica e opípara gastronomia.

pB1: Oh, é pura amabilidade sua… mas entre meu caro que está frio aí fora, entre e pendure aí o seu sobretudo.

Caminham os dois para a sala onde se encontra pB2

mE: Mas isto é fantástico…como está meu estimado colega?

pB2: Bem obrigado. E o meu amigo, como vai o seu metaconto?

mE: Estou quase a terminar o último capítulo, mas resolvi fazer uma pausa para visitar o nosso anfitrião, o que é sempre bastante refrescante devo acrescentar.

pB2: Absolutamente de acordo.

pB1: Deseja beber alguma coisa? Um vinho tinto clarete talvez? Fiz uns maravilhosos pastéis de massa tenra que ainda devem estar quentinhos e que estão uma delícia.

mE: Hum, parece-me tudo excelente. Aceito o vinho e os pastéis.

pB1 sai e dirigi-se para a cozinha

mE: Parece-me que vim interromper o vosso jogo.

pB2: Para felicidade e alívio do nosso camarada pB1, pois estava em grandes dificuldades. Mais umas jogadas e dava-lhe o xeque-mate.

mE: Oh diabo, peço-lhe imensa desculpa. Logo hoje que estava em vantagem.

pB2: Tolice. Acabamos o jogo mais tarde. É sempre um prazer estar consigo e isso é mais importante do que um mero jogo.

pB1 regressa da cozinha com uma jarra de vinho num tabuleiro, azeitonas temperadas, broa de milho e os pastelinhos

mE: Bravo… mas que belo aroma

pB2: … e a forma… e a textura…

pB1: Parem mas é de falar e comam agora enquanto estão quentinhos.

pB2: Ah é verdade, já me estava a esquecer de uma coisa que me intrigou, meu caro pB1. Quando há pouco minutos você interrompeu o nosso jogo dizendo que a campainha tinha tocado, eu não ouvi nada…

pB1: Isso é porque comprei uma nova campainha esta semana - uma campainha silenciosa.

pB2: Uma campainha silenciosa?

mE: Já tinha ouvido falar. Parece que é o último grito em campainhas digitais.

pB2: Uma campainha silenciosa? Mas se é silenciosa, como é que a ouvimos?

pB1: Bom, em primeiro lugar existem diferentes silêncios.

pB2: Diferentes silêncios? Eu pensava que só existia um tipo de silêncio: a ausência de som.

pB1: É uma questão de estarmos atentos e de ouvidos abertos. Ainda há pouco você disse que se sentia hoje particularmente concentrado devido ao silêncio. Aquilo a que você chamou de silêncio, era na realidade um silêncio relativo pois podíamos ouvir o crepitar da lenha da lareira, o vento lá fora, as nossas respirações…

mE: É como na música - também existem variegados tipos de silêncio.

pB2: Na música também? Eu sabia da importância do silêncio na música, em especial na contemporânea, mas não sabia que existiam diferentes silêncios.

mE: Mas é uma realidade, meu caro. Veja o caso do silêncio do compositor John Cage. Creio que já está familiarizado com a composição 4´33´´ de Cage?

pB2: Claro. Tenho até a partitura.

mE: Pois nessa peça, como sabe, o ou os intérpretes deverão não tocar durante um período de 4´33´´. Dessa forma, a experiência auditiva dos espectadores, era um pouco semelhante á vossa durante o vosso jogo de xadrez: vocês eram intérpretes de uma música silenciosa, mas ouviam as vossas respirações, o crepitar da lareira, o vento. Assim, esta composição é sempre diferente, consoante o sitio aonde é executada (sala de concerto, ao ar livre) e das pessoas que assistem ao evento. O que ouvimos, ao escutar o não tocar dos intérpretes, é tudo o resto.

pB2: Creio que já entendi esse tipo de silêncio.

mE: Mas há outros silêncios.

pB2: Quais?

mE: O silêncio - por exemplo - de um outro magnífico compositor americano: Morton Feldman.

pB2: E como é esse silêncio?

mE: Bem, no caso de Feldman, os seus silêncios são constituídos por infindáveis reverberações, como lhes chamou John Tilbury - que como ambos sabem é um experto da música de Feldman.

pB2: Ou seja: embora não haja acção instrumental durante curtos ou longos espaços temporais, o silêncio é constituído por reverberações de acções instrumentais passadas.

mE: Exactamente. Mas há mais: os silêncios de Sciarrino e Nono.

pB1: Ah, que belos silêncios esses…

pB2: Estão a deixar-me curioso. Como são esses silêncios?

mE: São silêncios de certa maneira idênticos. Aliás crê-se que Nono terá tido um primeiro contacto com esse tipo de silêncio numa obra de Sciarrino.

pB2: Sim, mas como os definir?

>mE: São silêncios criados a partir de pianíssimos instrumentais, ou seja, o silêncio de Sciarrino e Nono é constituído de sons instrumentais subliminais - por vezes quase parasitas, no sentido de que são sons que surgem por serem tocados a tão baixas dinâmicas.

pB2: Creio então poder definir esse silêncio como sendo um silêncio sonoro subliminal, não lhes parece?

pB1: Talvez… mas tem que se ter muito cuidado com definições absolutistas e por vezes redutoras, pois sintetizam apenas uma pequena essência de algo muito mais complexo. Veja o exemplo da minha nova campainha: ela reflecte outro tipo de silêncio que existe também em certa música mais recente - o silêncio digital. Certos compositores contemporâneos, incluem o silêncio digital - criado artificialmente nas suas peças. Assim, ao contrário do que acontecia por exemplo nos discos de vinil, aonde o silêncio era constituído pelo ruído amplificado da agulha sulcando o vinil, agora com a tecnologia digital, conseguiu-se criar o silêncio total. Mas como o distinguimos do silêncio do compositor John Cage? Muito simplesmente porque se em Cage o silêncio é alibi para se ouvir tudo o resto, neste caso, no silêncio digital, o que se pretende é a audição desse mesmo silêncio.

mE: Bravo. Muito bem dito.

pB2: Parabéns. De facto começo agora a aperceber-me das subtilezas e idiossincrasias dos diferentes silêncios mencionados. Mas continuo sem perceber como é que se ouve uma campainha silenciosa…

pB1: Muito facilmente, caro amigo: o som da campainha silenciosa é silencioso.

mE: Ah, Ah, Ah.

pB1: Vá meu caro, deixe lá isso, anime-se e beba mais um copo de clarete.Os três amigos continuaram em animada cavaqueira ouvindo - em loop - a peça4´33´´ de John Cage
Vitor Rua

"Interludio de tempo"
Sonja

quarta-feira, novembro 22, 2006

Começar de novo

Capitulo III (Excerto)
Luisa
O cenário era um hospital igual a tantos outros.
Um hospital público, igual aos outros hospitais públicos.
Uma enfermaria, com 5 camas.
Uma enfermaria igual a todas as outras.
Cinco camas iguais, cada uma com o seu número, iguais a todas as camas de hospital.
Em cada cama um paciente, igual a todos outros.
Lenta calma e pausadamente, como se nada de grave se passasse a sua volta, moviam-se os vários profissionais hospitalares. Médicos, enfermeiras, auxiliares, maqueiros, técnicos de todos os géneros.
Eram tantos!
Tanta a variedade dos cargos que ocupavam.
Comum a todos: a indiferença.
Cada caso é um caso, diz-se.
Nos hospitais não!
Nos hospitais todos os casos são apenas mais um caso.
Ela melhor que ninguém sabia-o.
Ela melhor que ninguém sabia que apesar de afirmarem que aquela calma era apenas aparente, que tinha objectivo de transmitir tranquilidade e uma sensação de segurança aos que sofrem, essa afirmação não correspondia à realidade.
Ela sabia qual era verdade.
E a verdade é que já não se importavam.
Ela sabia porque era enfermeira.
No principio, sim.
No princípio era diferente.
Rendidos ao apelo da vocação.
Movidos pela motivação de ajudar.
Consumidos pela paixão à profissão.
Inocentemente, ainda, susceptíveis a amar o próximo.
O início era apenas no início.
Lentamente sem darem por isso tudo ia mudando.
A verdade é que a indiferença aos poucos ia tomando conta de todos.
O pior dos vírus, a pior das doenças, invadia os hospitais, e os profissionais hospitalares, nada faziam.
Nem eles nem ninguém.
Nada se fazia na área da prevenção.
Nada se fazia na área do diagnóstico.
Nada se fazia na área terapêutica.
E a ciência médica não procurava a cura.
Como poderiam fazer alguma coisa se a própria existência da doença lhes era desconhecida.
Altamente contagiosa, proliferava alastrando-se por hospitais inteiros.
Nem nomes lhe deram, naturalmente.
Como se dá um nome a algo que não existe.
Vamos chamar-lhe SIH, Síndrome da Indiferença Hospitalar.
Em inglês HIS, Hospital Indiference Syndrome.
O primeiro sintoma é chamar às pessoas pacientes.
Depois de identifica-las como casos.
Seguidamente reuni-las em grupos de casos semelhantes.
Depois de devidamente identificadas e classificadas, rotula-las dando-lhes um número que por sistema corresponde ao número da cama que ocupam.
Os afectados pela doença falam um código estranho que só eles entendem, sendo frequente mesmo entre eles assistir a dificuldades na capacidade de entendimento.
Diálogo típico entre infectados com SIH:
-É pá, aquele paciente que entrou agora é complicado.
-Qual?
-O caso de Crohn.
-Não tou a ver.
-É pá, o da cama 14 na 2.
-Ah, já tou a ver!
-Não reage a messalazina, tou lixado!
-Exprimenta a sulfassalazina.
-Pois pá, mas não tava nada a apetecer-me cá ficar até mais tarde para ver a reacção, não é?
-Achas que o gajo não se aguenta até amanhã.
-Hum, duvido pá.
-E não quero ter problemas com o chefe, imagina que dá para o torto.
-Pois pá tens razão, mas não era hoje que tinhas aquele jantar com aquela miúda gira que conheceste no outro dia?
-Era pá, já viste o meu azar! Nem acredito que me havia logo de aparecer este filho da mãe que vá se lá saber porquê não reage à terapêutica!
-Podes crer, ganda galo o teu !
A verdade é que a indiferença, o virus SIH, tinha tomado conta de todos.
Fazia parte dos sintomas da doença nem dar por isso.
Para os infectados era apenas natural.
Afinal os profissionais de saúde são humanos, não dão para tudo, não se podem preocupar com tudo, ora bolas! Esta era a opinião generalizada no sector.
São apenas humanos.
E os pacientes são muitos.
Vão e vem.
Uns morrem.
Outros safam-se.
Uns recuperam.
Outros nunca voltam a ser o que eram.
Principalmente são muitos.
Os profissionais de saúde são poucos para tanto paciente.
São apenas humanos.
São apenas profissionais como os outros.
O verdadeiro profissional não deve criar ligações emocionais com os seus pacientes.
Não seria correcto. Estaria contra o código deontológico.
Todos os pacientes devem ser tratados como iguais.
Evitar a todo o custo a ligação emocional.
Entre o evitar da ligação emocional e a total indiferença é um passo.
Um passo apenas.
Entre o tratar todos como iguais e tratar todos como casos, números é um passo.
Um passo apenas.
Um passo gigante para quem esta do outro lado.
Porque há um outro lado.
O lado de quem está agarrado a uma cama de hospital.
O lado de quem é um caso.
O lado de quem é um número.
Porque esse número foi atribuído a uma pessoa.
Porque esse número, tal como o profissional de saúde, é um ser humano.
Porque esse número sofre.
Ela é um desses números agora.
Está ali.
Deitada na sua fria e utilitária cama hospitalar.
Antes estava de um lado, agora está do outro.
Antes era uma indiferente profissional hospitalar cumprindo as regras deontológicas.
Agora é a paciente da cama 22.
Na cama 22 a paciente está em coma.
Os pacientes como ela são dos poucos tratados de forma especial.
Tem direito a mais que indiferença.
Para eles existe um especial olhar crítico.
As vezes com sorte até algum desdém.
Ela era a paciente da cama 22 e fazia parte desse grupo especial:
Os suicidas!
“ Andamos nós prá qui a salvar vidas e estes gajos decidem dar caibo da deles por dá cá aquela palha…”
“Dá vontade de nem tratar, queriam morrer não era?”
"Os Suicidas" deviam ter uma ala só para eles. Estaria de acordo com o tratamento especial que lhes é dado.
A paciente da cama 22 , alem de pertencer ao incómodo grupo pertencia ao grupo dos profissionais de saude, tornando o seu acto um total desrespeito para com a profissão e com os colegas.
A paciente da cama 22 tem um nome.
Chamasse Luísa.
Tem 36 anos.
É enfermeira num lar de terceira idade.
Solteira.
Sem filhos.
Vive sozinha
Costumava gostar do mar, por isso pagava um balúrdio só para viver numa casa em que pudesse acordar e ver o mar.
Costumava ser uma apaixonada por dança, por isso, sempre sozinha, tentava ver todos os espectáculos que a carteira e os horários dos turnos lhe permitiam.
Costumava gostar de cozinhar, considerava a culinária uma arte, por isso mesmo quando chegava a casa já muito cansada não deixava de se pôr ao fogão criando. Aliava o prazer de cozinhar ao prazer de se mimar um pouco.
Dizia que na cozinha era uma artista e que as suas criações culinárias eram verdadeiras obras de arte.
Os poucos que experimentaram não hesitaram em confirmar o seu verdadeiro talento artístico.
Costumava gostar da vida.
Costumava gostar de viver
Um dia deixou de gostar.
O tempo foi passando e continuava sem gostar.
Cada dia que passava gostava menos.
Deixou de olhar o mar.
Deixou de ir aos seus espectáculos de dança.
Deixou de cozinhar.
Deixou de achar que a cozinha era uma arte e ela uma artista.
Deixou de gostar do dia.
Deixou de gostar da noite.
Deixou de gostar.
Deixou de viver.
Já estava morta quando se matou.
O caso de coma por suicídio da cama 22, é o caso do cansaço de viver de uma mulher chamada Luisa.
Está em coma há 4 dias.
Fez três lavagens ao estômago.
Tem tubos enfiados no nariz.
Agulhas enfiadas nos braços.
Está em coma há 4 dias mas esta viva.
Logo ela, que já estava morta quando se matou.

Isabel

(Continua)
" Suave toque de anjo"
Dream Catcher

segunda-feira, novembro 20, 2006

Desassossego

O meu alguidar encarnado


Quando eu era pequena a minha mãe conta que eu tinha um alguidar encarnado que com genuíno entusiasmo mostrava a toda a gente para que partilhassem comigo a visão dos meus peixes nadando naquele aquário improvisado.
Mostrava a todo o mundo o interior desse meu alguidar, chamando a atenção para os pormenores que a minha mente infantil considerava mais importantes: a forma dos peixes, as dimensões, as suas cores e principalmente o que faziam e como interagiam dentro do meu alguidar encarnado.
A reacção das pessoas ao serem confrontadas com esta sincera e entusiástica partilha da minha parte era de verdadeira desconcertação.
Acabavam sempre por me dizer aquelas coisas que todos os adultos dizem quando não sabem o que dizer: - Realmente que lindos peixes!
- Sim estou a ver que tratas bem deles, estão com um ar satisfeito.
- Então e como se chamam, já lhes deste um nome?
Apesar de todos dizerem o mesmo eu gostava de os ouvir, de lhes mostrar os meus peixes e com paciência respondia a tudo.
Explicava que realmente os meus peixes eram os mais bonitos do mundo.
Mostrava-lhes os peixes a comer os pedacinhos de comida que eu atirava para dentro do alguidar, para que fossem testemunhas que eu sabia tratar deles muito bem e por isso eles tinham aquele aspecto feliz e satisfeito.
Dizia-lhes o nome de cada peixe, e até explicava as relações existentes entre eles:
Esta é Vermelhinha, e casada com aquele ali estás a ver?
Ele chama-se Mário que é o nome do meu pai.
Estes dois mais pequeninos são os filhos. O Traquina é o mais novo e está sempre a fazer asneiras, e aquela amarela com uma risca azul no rabo é a Belinha, porque é muito bonita. A Belinha por vezes zangasse com as malandrices do mano, mas no fundo são muito amigos.
Nunca me aconteceu mostrar o meu alguidar a alguém que não visse tudo o que eu mostrava, e que não admirasse a beleza dos meus peixes.
Creio que a minha inocência desarmava qualquer um e contradizer-me seria uma crueldade.
Creio que o meu entusiasmo era tal que tinha o poder de fazer com que todos vissem o que eu lhes mostrava.
A verdade, que não era a minha obviamente, é que eu transportava de um lado para o outro com todo o cuidado e mostrava orgulhosamente a toda a gente: um alguidar encarnado cheio de água.
Os lindos peixes coloridos existiam mas não no alguidar.
Os lindos peixes coloridos existiam na minha imaginação.
No alguidar encarnado apenas água.

Tenho saudades de imaginar assim.
Tenho saudades de acreditar com tanta força.
Tenho saudades desse entusiasmo que fazia com que alguns acreditassem comigo e outros, já nessa altura, me achassem louca.
Tenho saudades de ver o que os meus olhos queriam ver.

Já passou tanto tempo.
Hoje vejo tanta coisa.
Tanto já passou por estes meus olhos cansados de ver tanto.
Dói.
Dói este cansaço.
Dói ver tanto.

Tenho saudades do meu alguidar encarnado onde eu via o mundo.

Tenho saudades do meu alguidar encarnado cheio apenas de água, que me dava liberdade de o encher com o mundo que tenho dentro de mim.

Hoje o meu alguidar sou eu.
Estou cheia, quase a transbordar…no entanto de mim não perco uma gota.
Peixes coloridos ainda os tenho, nadando neste mar de mim.

Hoje não os vejo.
Esconderam-se nalguma rocha para fugir à tempestade.

Hoje há tempestade dentro de mim.

Tenho saudades do meu alguidar encarnado cheio apenas de água ondulando suavemente ao sabor da minha imaginação.

Hoje há tempestade dentro de mim.
Hoje até os peixes assustados, encolhidos nalgum recanto de algum rochedo dentro de mim sentem saudades de quando viviam no meu alguidar encarnado.


Isabel

"Mistérios das profundidades"
Alfred Gockel

terça-feira, novembro 14, 2006

Começar de novo

A partir de 5ª feira ir-me-ei ausentar, regresso na segunda.
Vou ajudar na “desorganização” da montagem de provas de velocidade e slalom de mais uma volta a Portugal em automóveis Clássicos.

Deixo-vos com o início do II Capitulo da minha história “ Começar de novo”, e com o nascimento da segunda personagem, Ana.
Capitulo II
Ana (excerto)

Sobre mim escrevo eu. Sou assim, orgulhosamente teimosa!
Sou formada em Línguas e Literaturas Modernas e sou escritora.
Duas boas razões para sobre mim, escrever eu.
Tenho tudo:
A profissão que sempre quis e na qual sou bem sucedida.
O que escrevo é bom e vendável, o sonho de qualquer escritor.
Tenho dinheiro, muito.
Uma casa linda e inteiramente decorada por mim.
Adoro viajar e faço-o com a frequência que a minha vontade dita.
Tenho amigos e conhecidos.
Tenho amigos dos bons e conhecidos de todos os géneros, dos bons e dos maus.
Tenho uma família que me adora,
Pai e mãe ainda, o que é uma sorte.
Duas irmãs mais novas que com agrado e alguma preocupação vejo crescerem tornando-se dois seres maravilhosos, cheios de inteligência e bondade.
Tenho 39 anos, sou bonita e dona de um charme característico que sei ainda derrete corações.
Tenho um marido que me ama profunda e apaixonadamente.
Tenho tudo.
Tenho tudo e sou profundamente infeliz.
Não pensem que tenho depressões, que choro, ou me escondo dias a fio fechada num quarto escuro.
Não!
As depressões como-as ao pequeno-almoço, acompanhadas de um daqueles chás carrérimos, de umas torradas de pão escuro alemão, o meu favorito, e de umas divinais compotas caseiras também carérrimas que compro nas melhores charcutarias para me indecentemente me mimar enquanto penso naqueles pobres desgraçados que espalhados pelo mundo morrem de fome.
Sou fria, cínica e hipócrita!
Sou um ser bonito por fora cheio de talento que Deus me deu e não mereço.
Por dentro sou um verdadeiro monstro. E o pior ou o melhor, depende do ponto de vista, é que gosto de ser assim.
Sofro.
Sofro, por isso em silêncio, mas amo-me assim, tal e qual como sou.
Amo este monstro bonito, interessante e encantador.
Esbanjo encanto da mesma forma que esbanjo dinheiro... por isso todos me adoram.
Incrível este mundo, em que monstros como eu são adorados, quase idolatrados.
Sou uma fraude.
Mesmo isto que acabei de dizer e que parece um sincero assumir do meu verdadeiro eu: na verdade não o é.
Ou será?
Estarei a brincar consigo, respeitável leitor?
Será que o respeito?
Honestamente, não me parece.
Por outro lado uma vez que sou incapaz de ser honesta, é possível que até nutra por si algum respeito.
Parece-lhe que estou a brincar?
Ou pior ainda, sente-se literalmente gozado?
Pode ser que esteja apenas a ser irónica, o que já seria mais humanamente aceitável, não lhe parece?
E se estiver a fazer experiências usando-o a si querido leitor como cobaia?
Não lhe agradava ser cobaia para um novo romance, quem sabe um dos tops mais vendidos?
Seria humilhante, ou sentir-se-ia orgulhoso?
E se existisse em mim um outro lado menos monstruoso do qual até pudesse gostar sem se sentir culpado?
E se eu lhe disser que existe um 3º eu?
Escondido num cantinho cheio de sol, bem cá no fundo.
Um 3º eu que odeia os outros dois.
Um ser carinhoso, bondoso, frágil e sensível.
Um ser que um dia espreitou o mundo, e de tal forma lhe doeu o que viu que se fechou para sempre dentro de uma casinha, especial que criei só para ele. Uma espécie de útero materno onde se sente confortável e protegido.
Os outros dois eus vivem no mundo, este vive numa casinha pequena e colorida, onde nunca anoitece e o sol ilumina todos os dias. Esta casa é numa rua escondida, num bairro secreto, ali prós lados do Coração.
E querido leitor, se este terceiro e simpático eu fosse a maior das mentiras. Se eu o tivesse criado apenas para poder falar a vontade dos outros dois, quem sabe mais, os reais, sabendo que por piores que fossem, você querido e respeitável leitor iria sempre gostar um pouco de mim.
Como não depois de saber que lá no fundo, bem no fundo eu tinha o tal simpático e bondoso eu.
E se eu lhe disser que em mim existem mais de três eus?
Acha-me louca ou mentirosa?
E se eu for as duas coisas e ainda oportunista.
Os escritores são uns aldrabões, convença-se disso.
Tal como os psiquiatras, os escritores são jogadores batoteiros, servem-se habilmente das suas mais íntimas emoções, das suas maiores fragilidades, das suas mais profundas angústias para o enganar.
Para o fazer sentir-se compreendido, identificado, menos só.
Ou para lhe aguçar a curiosidade intrigando-o com um qualquer mistério com um propósito apenas: mantê-lo agarrado a um monte de folhas inúteis às quais chama pomposamente de obra literária.
Noutros casos essas folhas deixam-no fascinado encantado por uma vida que nunca teve e sabe que não irá ter nunca.
O aldrabão do escritor também não, tal como o seu leitor também ele conhece esses mundos apenas dos livros e dos filmes… é uma aldrabice em cadeia.
Existe ainda o caso mais grave, o livro que serve para lhe provocar a ambição.
O livro que desperta o lado pior que há em si.
O livro que o vai fazer desejar o que não tem e lutar por isso com uma ferocidade que até ai desconhecia existir dentro de si.
Este tipo de livro é o mais perigoso! Também o mais rentável! Rende ao escritor, aos bancos, as lojas, aos restaurantes, enfim rende a todos menos a si.
E assim, ingénuo e inocente leitor, todo um conjunto de dóceis e sedutores abutres enchem as contas bancárias a sua custa, você não dá por nada e ainda é capaz de defender até ao fim.
Em nome de quê?
Em nome da cultura.
Da cultura que se convenceu que passou a ter desde que foi vitima do maior dos monstros criminosos: O escritor.
Mas sente-se mais feliz assim?
Sente-se mais acompanhado?
Faz a sua vida valer mais a pena?
Dá mais cor a sua vidinha insípida?
Então talvez os aldrabões como nós sejam um mal necessário.
Ou seremos um mal a eliminar para ver se de uma vez por todas é personagem na sua própria vida.
Para ver se vive realmente, em vez de se limitar a viver através dos romances que os monstros como eu escrevem para lhe adoçar a vida.
Para ver se é capaz de fazer algo para a melhorar influenciado pelo seu próprio pensamento e não por seres terríveis como nós. Melhor ainda, tente melhorar a sua vidinha inútil influenciado pela sua bondade natural. Se é que a tem? Se é que alguém a tem?
Assuma isto:
A sua vida não é doce, a sua vida sabe a fel.
Não é o bombom que lhe dou em forma de escrita, depois de uma vida inteira a beber a sua amarga existência que vai mudar nada pois não?
Então mude, caro leitor.
Mas mude sozinho.
Deixe de se deixar enganar por livros e novelas escritas por monstros insensíveis aldrabões e oportunistas como eu.
Comece por deixar de acreditar que é por ler uns quantos livros que se torna culto!
É a sua custa, que eu tenho a boa vida que tenho.
Enquanto o simpático leitor bebe café com leite e come pão com manteiga ao pequeno-almoço para com sacrifício comprar mais um livro, eu tomo um pequeno-almoço de qualidade, saudável e composto de todos os nutrientes necessários a uma boa alimentação e ainda por cima carérrimo.
Compre mais livros meus, sinta-se mais culto… eu adoro!
Eu sei que mesmo lhe estando a dizer tudo isto não me acredita.
Acha impossível alguém ser como eu.
Ainda bem, se eu achasse que acreditava não lho dizia.
Já viu o que eu perdia se me acreditasse?
Já viu que dizer-lhe isto seria brincar com o fogo se admitisse sequer a hipótese de me acreditar.
Podia perder tudo.
Mas não perco.
O Escritor primeiro enfeitiça o leitor e depois pode fazer dele o que quiser.
Graças a si tenho tudo.
Menos uma coisa: felicidade.
Ninguém me pode dar aquilo em que não acredito.
Também ninguém me consegue fazer acreditar.
O meu marido bem tenta, coitado!
Curiosamente, está até convencido que sou quase feliz.
Idiota!
Há uma única coisa que ajudava a que me sentisse melhor: admito!
Vê-lo morto!
Não!
Vê-lo morto era pouco.
Mata-lo isso sim!
Isso seria capaz mesmo que por breves momentos fazer-me sentir algo próximo com a felicidade.
Odeio-o!
Não!
Nem ódio lhe tenho.
Incomoda-me a sua presença.
Incomoda-me desde o início.
Incomoda-me como nos incomoda uma mosca ou um mosquito.
Não lhe damos importância mas é incomodativo e não descansamos enquanto não nos vemos livres do irritante animal.
Ultimamente incomoda-me mais ainda.
Sempre teve a mania que era compreensivo e que me entendia como ninguém.
Pobre idiota!
Não entende nem uma milésima parte de uma de nós quanto mais entender-nos a todas.
Nem eu entendo todas as Anas.
Pensando bem não sei sequer quantas somos na totalidade, vamos surgindo à medida das necessidades.
Idiota!
Agora que frequenta aulas de yoga convenceu-se que atingiu uma elevação espiritual que lhe permite entender-me melhor ainda.
Como é um ser humano cheio de bondade intrínseca, compreensão e ainda por cima espiritualmente elevado, por mais cabra que eu seja com ele,
o atrasado mental trata-me com carinho com ternura.
Com carinho e ternura, imaginem!
Que tédio!
Não tem a mínima ideia de que é um idiota.
Além de todas aquelas características maravilhosas de personalidade que já mencionei ainda se acha inteligente e culto e com uma capacidade de raciocínio fora do comum.
Ridículo!
Irritantemente ridículo.
Só morto!
Imagina-lo morto faz-me sorrir.
Imaginar matá-lo é das poucas coisas que me dá uma verdadeira sensação de prazer.
Casei-me com ele sabendo perfeitamente que era um idiota.
Sempre soube.
Achei que um idiota bondoso como ele me podia ajudar a equilibrar.
Nessa altura eu também ainda não primava pela clareza de raciocínio.
A falta de experiência da vida não me permitia ainda atingir o patamar de capacidade de análise que tornaria de imediato obvio que isso não seria nunca possível.
Quis ser oportunistamente inteligente mas falhei redondamente.
Faltou-me visão.
Visão de longo alcance. Que me fizesse ver que rapidamente deixaria ser tolerável.
Tornou-se intolerável assim que começou a viver no mesmo espaço que eu.
Incomodou-me esta partilha de espaço desde início.
Esta sensação evoluiu com uma velocidade vertiginosa, até inevitavelmente se tornar insuportável.
Hoje em dia evito estar no mesmo espaço que ele.
Quando tem mesmo de ser, deixo lá o corpo e vou-me embora para outro lado.
O idiota continua, claro está, convencido que estou lá com ele mas para mim isso seria impensável.
Quero-o morto!
Achei que a normalidade dele, a sua mediocridade, a sua mediania ajudaria a disfarçar a minha “ loucura”.
Cedo percebi que não necessitava dele para isso.
Cedo percebi que podia e sabia faze-lo sozinha.
Posso faze-lo, sozinha e ser bem sucedida.
Basta que as Anas se saibam controlar e se mostrem apenas de acordo com as conveniências do momento.
Isto aprende-se e eu aprendo depressa.
As Anas agora sabem como agir e como se comportar.
Hoje em dia sei bem cuidar de nós e como fazer para aos poucos alcançar os meus objectivos.
Tenho que arranjar uma que o mate.
Sozinha.
Sem que as outras saibam.
É o mais inteligente.
Todas nós ignoraremos o que se passou. Fá-lo-emos genuinamente pois a verdade é que não sabemos mesmo.
Só ela saberá, a Ana assassina.

(continua)


Isabel

Mãos frias (seguram janelas inquietas)
Daniel Costa Lourenço

segunda-feira, novembro 13, 2006

Histórias de aprender e encantar

(Peço desculpa por escrever histórias grandes, mas eu sou mesmo assim e gosto de me perder e me encontar entre as palavras)
A Carolina está com algumas dificuldades na leitura, o que faz com que se torne difícil estudar e com que ainda não tenha entendido o prazer da leitura. Tem uma forma engraçada e ainda demasiado infantil de ler: lê muito depressa como se tivesse hora marcada para chegar ao fim do texto e já estivesse muitíssimo atrasada. Resultado: Palavras a treparem umas por cima das outras, palavras inventadas, palavras adivinhadas e a respiração e as pausas a surgirem quando lhe falta o fôlego e não quando a pontuação assim indica.
Esta história é para tentar motivar a carolina a fazer um esforço para aprender a ler para depois descobrir o mundo encantado que existe dentro dos livros.

Carolina e a árvore da imaginação

Estava deitada no sofá, numa daquelas posições contorcidas próprias das crianças, aparentemente impossíveis para qualquer um excepto um verdadeiro artista de circo. A Carolina conseguia fazer qualquer coisa numa destas estranhas posições, comer, ver televisão, dormir e neste caso ler.
O contorcionismo desta vez não era por diversão, distracção ou para testar a sua flexibilidade, desta vez era um sinal de total aborrecimento. Tudo nela era revelador desse enfado.
A posição indicava desgaste, as faces sempre rosadas pareciam ter perdido a cor, os olhos descaídos tornavam o olhar vazio e inexpressivo deixando exposto apenas o mais completo desinteresse. A Isabel e o pai observavam de longe com alguma tristeza e preocupação.
A curiosidade pelos livros estava lá. Sabendo que a Isabel gostava muito de ler já lhe tinha feito inúmeras perguntas que indiciavam essa curiosidade mas neste momento não passava disso: simples curiosidade.
Faltava aprender a ler bem para aprender a ter prazer com a leitura. Notando que o cansaço e o tédio tinham tomado conta da Carolina, sugeriram-lhe que fizesse um breve intervalo e depois voltasse com mais energia e vontade de ler com verdadeiro interesse.
Contente com a sugestão, foi imediato o recuperar das cores naturais, o brilho nos olhos, o sorriso nos lábios e correndo dirigiu-se à cozinha com intenção de preparar um delicioso lanche. Lembrou-se de Lia e do lanche que a princesa lhe tinha prometido com uns amigos muito especiais.
Quem seriam?
Quando viria Lia busca-la para esse lanche?
Abriu o frigorifico nada lhe despertava a atenção nem o apetite.
Lia tinha-lhe prometido que no tal lanche comeriam seu bolo favorito: Chese Cake de morango. Só de pensar nisso fazia-lhe crescer água na boca. Uma ideia surgiu na sua imaginativa cabecinha: Vou lanchar a Naturália! É isso mesmo Vou lanchar a Naturália!
Pensou com muita força no seu desejo e a sua vontade fez magia, como faz a vontade de todas as crianças.
De imediato caiu estatelada bem no meio de um campo coberto de lindas papoilas vermelhas. Estranhou o silêncio, não se ouvia nada absolutamente nada.
O silêncio era total.
Olhou em volta, além de milhares de papoilas vermelhas num campo que parecia não ter fim, apenas uma enorme e solitária árvore que se destacava no centro rodeada de florinhas vermelhas.
A árvore parecia muito, muito antiga e era tão grande que parecia tocar o céu.
O tronco muito grosso, era tão largo quanto uma casa e as raízes eram tantas que se estendiam para fora do solo rodeando o tronco da árvore como braços procurando segurança e protecção. Carolina tirou os sapatos querendo sentir aquele campo vermelho por baixo dos pés e caminhou instintivamente em direcção à árvore. Estranhamente no meio de todo aquele silêncio parecia escutava uma voz vinda do interior da árvore chamando: - Carolinaaaa! Vem carolinaaaaa! Aproximou-se devagar e assim que chegou perto, olhou para aquela árvore tão velhinha e teve o impulso de a abraçar, abraçou-a como se abraça alguém de quem se gosta muito.
Ao fazer isto escutou um ruído semelhante a uma porta a abrir.
O ruído vinha precisamente do outro lado oposto ao que se encontrava. Sentiu medo, pois na verdade embora o local fosse lindo ela estava ali sozinha e havia algo de estranho e misterioso naquele local, especialmente naquela árvore.
Parecia estar viva! Parecia mover-se. Parecia falar com ela. A curiosidade era mas forte que o medo e corajosa contornou a enorme árvore para ver que barulho era aquele.
Do outro lado tinha-se aberto uma porta. Era pouco maior que o seu tamanho e muito estreita. A porta estava totalmente aberta parecendo convida-la a entrar mas lá dentro havia apenas escuridão e silencio.
Carolina não sabia que fazer. Tinha medo de entrar mas algo lhe dizia que o tinha de fazer, que nada de mal lhe podia acontecer, logo ali em Naturália onde só lhe tinham acontecido coisas boas e divertidas, onde tinha feito novos amigos e aprendido tantas coisas maravilhosas.
Vou entrar! Pensou, valente e decidida.
Devagarinho foi avançando, um pé, depois o outro, um passo depois outro.
Sentia os pés descalços caminharem sobre algo muito fofo que não sabia identificar o que era mas que sentia como se fosse algodão. Deu uns quantos passos e voltou a ouvir o ruído da porta, soube que se tinha fechado e teve novamente um estremecimento provocado pelo medo. Escutou a voz de novo:- Entra Carolina , não tenhas medo.
A voz parecia vir de dentro da árvore, era uma voz suave e dócil, como a voz de uma senhora velhinha.
-Onde estou?
-Quem está a falar?
-Como sabe o meu nome?
-Chiuuu, menina, tantas perguntas?
Senta-te um pouco, ai mesmo onde estás.
-Onde?
No chão? Assim vou chegar a casa toda suja.
-Aqui não há chão, senta-te e confia em mim. Retorquiu a voz.
Carolina sentou-se, não sabia onde, sabia apenas que era a cadeira mais confortável onde já se sentara... uma cadeira completamente invisível.
-Estas confortável? Perguntou a voz misteriosa.
-Sim muito, mas é estranho porque não vejo nenhuma cadeira.
-Nem tudo o que se sente é visível Carolina um dia vais entender. Respondeu a voz.
Querias saber onde estas? Estás no Vale das papoilas.
Queres saber com quem falas, quem sou eu? Sou a árvore da imaginação. Sou muito velha, existo desde que existem pessoas, as pessoas plantaram-me assim que começaram a imaginar. Ora como desde sempre tiveram a capacidade de imaginar eu existo desde sempre, já viste como sou velhota?
Queres saber como sei o teu nome? A essa pergunta eu respondo-te daqui a pouco, pode ser, Carolina?
-Pode sim, vou ficar curiosa mas espero. Respondeu respeitosamente.
-E não tens mais nada para me perguntar menina? Perguntou a voz com um tom um tanto ou quanto aborrecido e autoritário que fez a Carolina pensar de novo se tinha feito bem em ter entrado ali.
-Bem, eu gostava de saber o que estou aqui a fazer e porque é que me chamou. Perguntou receosa.
É que sabe D. Arvore, eu só vinha à procura da princesa Lia e não sei bem como é que acabei por vir aqui parar.
A velha árvore desatou a rir à gargalhada até lhe faltar o ar.
-Ai, ai menina e achas que eu não sei o que vinhas aqui fazer?
Eu sei tudo sobre ti. Querias ir lanchar com a tua amiga Lia. Comer o teu bolo favorito e conhecer uns amigos que ela te prometeu apresentar não era?
-Era sim D. Árvore.
Isso tem algum mal?
Fiz alguma asneira?
-Não! Disse a voz.
Não tem mal minha querida mas conta-me lá que estavas a fazer antes de te apetecer vir ter com a Lia.
-Estava a ler um livro. Respondeu deixando transbordar toda a sua insegurança.
-A ler?
Com que então estavas a ler menina?
Ou estarias a fazer o frete de tentar ler?
Acredita que podes ser sincera comigo! Eu existo há milhares e milhares de anos para ajudar meninas como tu.
-A sério?
Bom a verdade D. Árvore é que eu estava assim... humm... bom estava assim... mais ao menos a levar uma “granda seca” a ler o livro. Respondeu a Carolina com toda a sinceridade.
Eu gosto de ler, mas não é assim muito... e ainda leio muito mal dizem os mais crescidos.
-Eu sei Carolina, é por isso estás aqui.
A princesa Lia gostava muito de te levar a conhecer dois grandes amigos dela, são dois irmãos, os dois são escritores cheios de talento, um escreve livros em prosa e outro em poesia.
Mas eu achei muito mal essa ideia da Princesa e ralhei com ela. Disse a árvore com uma voz zangada.
Como podia ela querer levar-te a lanchar com dois escritores tão cheios de talento se tu não os ias entender ainda, não ias entender o quanto é maravilhoso o que eles fazem porque não gostas de ler ainda.
Tive uma conversa com a Lia e disse-lhe: -Princesa se a sua amiga Carolina é uma menina tão especial como diz ela sozinha há-de vir ter comigo, em busca do que lhe falta descobrir.
Depois sim podes levá-la a conhecer os teus amigos. E como vês menina eu tinha razão, aqui estás tu. A Lia também tinha razão és mesmo uma menina especial.
-D. Árvore, desculpe, não fique aborrecida mas eu ainda não entendi bem porque estou aqui. Disse a Carolina num tom cada vez mais respeitoso.
-Vais entender, só tens de confiar em mim e principalmente confiar nas tuas capacidades.
Vá menina, fecha os olhos e pensa no que gostavas agora.
Estás a pensar?
-Sim. Estou D. Árvore.
-Então diz baixinho. Disse-lhe a voz
-Gostava de saber ler melhor.
-Mais alguma coisa?
-Sim depois gostava de gostar de ler como a Isabel e a minha mãe por exemplo, que me contam que aprendem muitas coisas e também se divertem com os livros. Pediu a Carolina.
-Muito bem Carolina. Esse é o teu desejo?
Então agora já sabes.
Foi para isso que aqui vieste.
Agora abre os olhos.
O que vês?
-Vejo tudo escuro e uma luzinha brilhante ali ao fundo.
-Vês essa luz? Perguntou a árvore da imaginação.
-Vejo.
-Bom sinal... quer dizer que estás pronta a aprender. Essa luz que vês é a luz mágica das palavras.
-As palavras têm uma luz mágica? Perguntou incrédula a Carolina
-Tem mas só algumas meninas a vêem... meninas especiais como tu, que depois crescem e se tornam adultos especiais.
-Ou velhinhas especiais como a D. Árvore não?
-Sim menina atrevida, ou velhinhas especiais como eu.
Agora, levanta-te da cadeira e vai ter com a luzinha.
Desta vez sem medo nenhum, como se fosse puxada por um fio encantado que fazia com que tivesse a sensação de estar a flutuar, Carolina deixou-se ir até chegar junto da luz.
Nessa zona o tronco da árvore tornava-se muito mais largo, parecendo um amplo salão.
Ali o tronco estava totalmente coberto de folhas de todos os tons de verde e amarelo salpicados aqui e ali por lindas papoilas vermelhas formando uma espécie de entrançado que se movia continuamente criando como por magia a mais bela sucessão de imagens que alguma vez vira.
Ao centro iluminado apenas pelo intenso brilho da pequena luz, estava um livro.
O livro flutuava no ar mesmo à altura dos seus ombros. Não estava assente sobre nada nem estava pendurado em nada, misteriosamente ali estava, como que pousado sobre o ar.
Era um livro pequeno forrado de vermelho e na capa tinha uma espécie de marca que se assemelhava ao desenho de duas mãos de criança.
Todo o ambiente estava envolvido numa aura de mistério que deixava a Carolina um pouco receosa mas acima de tudo envolvida em todo aquele encanto e magia.
-Consegues ver o livro menina? Perguntou a voz.
-Sim, consigo. E acho muito estranho! Porque é que o livro não cai se não tem nada a segurá-lo? -Tem sim Carolina... quem está a segura-lo és tu.
-Eu? O espanto era mais do que evidente.
Eu, D. Árvore?
Mas como?
-Com a tua vontade de aprender a ler.
Com a tua vontade de querer gostar de ler.
Quem segura o livro és tu e todas as meninas como tu que aqui vem. O livro está seguro pela vossa vontade.
No dia que deixarem de vir aqui meninas o livro cai e pouco depois desaparece. Entendes?
- Acho que sim D. Árvore. Respondeu pensativa.
Quer dizer que só há livros enquanto houver pessoas com muita vontade de os ler, senão os livros acabam por desaparecer.
-Isso mesmo, vês como és esperta. Vês como és uma menina muito especial. Agora chegou a altura do mais importante! Achas que estás preparada?
A Carolina sentia-se orgulhosa, contente e confiante com todos os elogios que a árvore da imaginação lhe tinha feito, a sua resposta foi pronta e destemida.
– Claro, claro que estou preparada, não a vou desiludir, prometo!
-Eu sei que não. Disse a voz transmitindo-lhe ainda mais confiança.
Agora Carolina vai em direcção ao livro e coloca-te mesmo por baixo da luz.
Olha para o livro, estão duas mãos marcadas na capa do livro, estás a ver?
-Sim estou, D. Árvore.
-Então coloca as tuas mãos exactamente no mesmo sítio, sem fazer força, com suavidade.
Olha para a luz, e depois para as tuas mãos sobre o livro.
A menina ia seguindo, concentrada, todas as instruções que a doce e misteriosa voz lhe ia dando. -Agora fecha os olhos e deixa-te levar pela magia.
Aquela que era apenas uma pequena luzinha tornou-se subitamente num enorme clarão iluminando a menina e o livro.
De dentro do livro saíam raios de luz de todas as cores que se espalhavam pelo salão numa espécie de fogo de artificio onde todas as formas e cores se moviam como se estivessem vivas. Tudo era belo, mágico e misterioso!
De repente tudo parou.
No centro do velho tronco apenas a Carolina, com os olhos mais brilhantes que nunca e o sorriso de quem tinha acabado de fazer a mais maravilhosa das descobertas.
De novo a voz se fez ouvir: - Então Carolina?
-Sabes o que aconteceu?
A Carolina estava muda de deslumbramento e não soube responder, limitou-se a continuar a sorrir.
A voz continuou: - Aqui dentro de mim, celebra-se um ritual milenar, um dos mais importantes e mais bonitos. Este ritual é celebrado no mundo inteiro desde que o homem inventou a escrita. Nessa altura há muitos, muitos anos a traz, procurou-se muito até encontrar o local certo para fazer esta celebração.
Até um dia um velho e sábio feiticeiro se ter lembrado que não havia melhor local para fazer esse celebração do que em mim, a árvore da imaginação.
Ele costumava deitar-se na minha sombra imaginando muita coisa que depois escrevia, outras vezes vinha para aqui acompanhado de um livro simplesmente para ler. O velho feiticeiro sabia que tanto para ler como para escrever é preciso saber imaginar, por isso me escolheu para em mim se celebrar este belo ritual.
-Sabes menina, para se ler um livro verdadeiramente, temos que imaginar que estamos dentro da história.
É isso que faz com que ler seja tão maravilhoso. Ler é fazer magia! É magicamente entrar dentro do livro, e dentro dele poder fazer mil coisas, rir, brincar, chorar, viajar, sonhar, aprender.
Já sabes agora dizer-me o que aconteceu quando tocaste no livro. Indagou.
-Sei… li o livro.
A árvore riu – Exactamente, acabaste de ler o teu primeiro livro.
E diz-me, gostaste? Perguntou a velha árvore a Carolina
-Ai, D. Árvore, eu adorei! Vi coisas que nunca tinha visto antes, nem sequer imaginava, aprendi imensas coisas novas, até me diverti a brincar com meninos e meninas e animais engraçados que lá encontrei.
-E sabes porque é que gostaste tanto?
-Porque li de verdade, não foi? Porque li como se estivesse dentro do livro, não é?
-Sim, foi por isso que gostaste tanto.
E agora? Ainda queres saber como sei o teu nome, Carolina?
-Sim, estou muito curiosa para saber.
-A resposta é fácil. Porque eu só existo dentro da tua imaginação.
-O quê D. Árvore?
Eu estou a imaginar isto tudo?
Nada disto existe?
-Estás a misturar as coisas. Existe sim, mas na tua imaginação.
A imaginação é um dom poderoso, tão poderoso que faz as coisas acontecerem.
Tu querias aprender a ler, e mais do que tudo querias aprender a gostar de ler.
E a tua vontade foi tão forte, que te trouxe aqui.
Chegaste aqui com a força da tua vontade e a tua imaginação fez o resto.
-Mas é estranho! Disse a Carolina
Eu ia jurar que tinha mesmo lido o livro.
-E leste, aqui comigo, a árvore da tua imaginação.
Agora já estás pronta para ler muitos mais.
E estás pronta para conhecer os amigos escritores da Princesa Lia.
Agora vai, corre para casa que estão à tua espera.
E eu estou à espera que outra menina como tu me venha visitar.
Adeus Carolina.
-Adeus D. Árvore, foi… foi…giro estar aqui!
-Ora menina, não tens imaginação para dizer que foi mais que giro? Disse árvore a rir.
-Estava a brincar! Respondeu a Carolina.
– Foi mágico!
-Está melhor… vá corre, põe-te a andar daqui para fora.
Já aprendeste o que vinhas aprender.
Parabéns, menina!
Vai ter com o teu pai e a Isabel e lê um pouco para eles. Vais deixa-los muito contentes
Isabel


"Papoilas"
Steve Thoms

sexta-feira, novembro 10, 2006

Desafio

As minhas 5 manias

Fui desafiada pela Vera e por um Corvo Negro, poeta voador de negra plumagem, para desvendar 5 das minhas manias: Pensei bastante no assunto. Quis aproveitar para fazer uma introspecção ao tentar identifica-las. Quis também ser completamente honesta tornando este jogo num pequeno acto de coragem acrescentando-lhe assim ainda mais sentido. Resumindo quis ter a honestidade e a coragem de as assumir perante mim e com a mesma honestidade e coragem assumi-las perante vós. Ao fazer este raciocínio identifiquei de imediato a primeira. E atrás dela vieram tantas que me é verdadeiramente difícil escolher só 5, cheguei à conclusão que sou uma “manienta”!
Sou uma “manienta” com graça, (verdade seja dita!) com sentido de humor para me rir das minhas próprias manias e principalmente disposta a ir aos poucos reduzindo aquelas que prejudicam os outros, tipo: estar em casa em silêncio total nem música nem televisão nem nada que faça o mínimo barulho, estar sempre a desligar as luzes pois a penumbra é-me confortável. Mas a verdade verdadinha é que quanto mais penso mais manias descubro. Sou o verdadeiro exemplo da ” manienta.”
Assumido este facto, passemos estão à selecção das 5 mais:
1ª Mania – Tenho mania que sou corajosa assumida e honesta.
E de lutar permanentemente para ser mais corajosa ainda, mais assumida ainda, mais honesta ainda, mesmo quando é difícil ou não dá mesmo jeito nenhum. O que me detêm? O medo de magoar alguém, isso faz-me hesitar e pensar quando poderei estar a ser excessiva.
2ª Mania – Tenho a mania das histórias.
Tudo me faz lembrar ou imaginar de imediato um sem número de histórias, o curioso é que normalmente não as conto, ou melhor, conto cá para dentro só para eu ouvir. Conto-as apenas ao Miguel (o meu amor) e agora aqui a vocês que me lêem. A verdade é que a minha mente está permanentemente recheada de histórias, umas são memórias, outras sonhos, e outras fruto desta minha fértil amaginação.
3ª Mania – Tenho a mania de me ligar muito a objectos.
Muitos destes objectos sem valor aparente mas que eu colecciono em quantidades exorbitantes e dando-lhes uma importância exagerada simplesmente porque me apaixono por eles. É difícil de entender a muita gente pois muitos destes objectos são aquilo a que vulgarmente se chama “tralha”. Esta mania torna-me um pouco a dar para o muito chata por vezes, sou capaz de me lembrar a meio da noite que não sei de uns brincos que adoro por exemplo, vai dai, acendo a luz e vou procura-los pela casa inteira e não descanso enquanto não os encontrar.
Impus recentemente a mim própria como objectivo ir aos poucos criando um maior desapego em relação aos objectos e tenho sido bem sucedida, estou melhorzinha desta mania.
Principais objectos nos quais esta mania se centra:
- Livros: em relação a eles é mesmo amor, gosto de os ler e reler, gosto de os admirar, de falar com eles e até de os acariciar (manias!).
- Acessórios: Brincos, colares, pulseiras, cintos, malas, sapatos, botas, boinas e todo o tipo de acessórios. (sendo da opinião que os pormenores fazem a diferença, é através deles que defino o meu estilo pessoal por isso para mim são importantes.
4ª Mania – Tenho a mania dos comprimidos e dos chás naturais.
Tomo comprimidos de todos os géneros, cores e feitios para tudo e mais alguma coisa. Sou uma chata, detesto aqueles complexos que já tem tudo, gosto de ser eu a determinar as quantidades correctas… de forma que leio tudo o que posso sobre o assunto, massacro as desgraçadas das funcionárias das lojas de produtos naturais para receber ainda mais informação e depois crio o meu próprio complexo de comprimidos, incluindo vitaminas, cálcio magnésio, ferro potássio, antioxidantes etc. etc.
Faço exactamente a mesma coisa com os chás, que adoro e passo grande parte do dia de chávena de chá na mão.
5ª Mania – Tenho a mania das cores.
Tenho a mania da conjugação de cores. Gosto de coisas belas (no meu próprio conceito de beleza, obviamente). É muito importante que esteja rodeada de coisas que esteticamente me são agradáveis. Nomeadamente as cores. Gosto de cores fortes intensas quentes mas odeio cores garridas e espampanantes especialmente se misturadas de forma desarmónica. Tenho uma ligação estranha com o preto. Visto-me essencialmente de preto e seja no que for as coisas negras são as primeiras a despertar-me a atenção. Não gosto de cores garridas mas gosto de contrastes, gosto de preto com amarelo, com laranja. Gosto de vermelho escuro, que é a cor do meu cabelo e que faz o tal contraste com a roupa preta que gosto de usar. Já tentei vestir-me menos de preto e tem sido difícil e já tentei mudar a cor do cabelo e também não está fácil.
Como já devem ter percebido ficaria aqui dias a falar das minhas manias, e de tudo e mais alguma coisa, pois para mim de facto as palavras são como as cerejas.
Agora é altura de desafiar 5 pessoas que deverão fazer o mesmo que eu, falar sobre 5 manias que as caracterizem. Acontece que como não sou sou grande cumpridora de regras, vou alterar as regras e desafiar mais de 5 pessoas: vou desafiar nada mais nada menos que 16 . Os escolhidos deverão responder nos seus blogues, desafiar outras 5 pessoas e ainda não esquecer publicar as respectivas regras do jogo ( provavelmente para que alguns como eu não as cumpram ).
Os desafiados por mim são: Tcham tcham tcham tcham…
Sentidos, Alquimista, Frog, Veritas, Estranha Pessoa Esta, P. Guerreiro, Pierrot, Bazuco, Pensamentos-vagabundos, Bruna Pereira, Alexandre, Delfim Peixoto, Luis Duverge, Kolm, Luigi e Teresa Durães.
Desculpem passar de 5 para 16 desafiados, mas no fundo para que servem estas regras? Eu prefiro seguir a regra da minha vontade.
Isabel
Fotografia de Marta Verissimo

quarta-feira, novembro 08, 2006

Começar de novo

Carlos ( segundo excerto)
11.27, despertou com o toque do telefone e um sorriso nos lábios.
Aquele toque era o dela, “Drive” dos Cars.
Ela era a sua melhor amiga.
“Who’s gonna drive you home tonight?” dizia a letra.
Era a sua música favorita.
Contara-lhe que sempre se sentira assim, desprotegida, sem ter quem levasse de regresso a casa.
Um dia ela deitou a cabeça no ombro dele e informou-o de que já não se sentia assim. Que agora o tinha a ele.
-És o eleito. Comunicou-lhe com o olhar transbordando carinho.
-A partir de hoje elejo-te o meu cavaleiro andante.
Mas atenção meu amigo, a minha música favorita continua a ser a mesma, muda apenas o significado. Antes representava o meu presente, agora é o símbolo de um passado que hoje dou por terminado. Tu estás aqui e tomar conta de mim é da tua responsabilidade até ao fim dos teus dias.
Fora o momento mais intensamente comovedor daquela longa amizade.
Declararam-se mutuamente, fizeram juras de eterna amizade e dedicação, choraram abraçados, até que por fim, consumidos pela ternura, no pico da emoção, fizeram um pacto que não tinham ainda quebrado nunca: Tomarem para sempre conta um do outro.
A empresa tinha-lhe dado um desses telefones modernos com possibilidade de personalizar os toques, fê-lo apenas para uma pessoa: para ela.
Béti a sua melhor amiga.
Com um sorriso ainda ensonado na voz atendeu.
-Olá minha doida, hoje madrugaste?
-Bom dia amiguinho, escuta isto: “...ela abriu as pernas e ele penetrou-a com a alma, porque é assim que se penetra um ser que se ama. A alma usa o sexo apenas como instrumento”.
Estás a ouvir Carlos?
Entendes? É isto que eu quero, ser penetrada com a alma.
Tenho 36 anos, será pedir muito?
-Bastante minha amiga, lamento desapontar-te mas há quem passe toda uma vida sem sentir isso nunca. O que estas a ler Béti?
-Um livro que me emprestaram ontem e está a deixar-me completamente maluca.
-Isso vejo eu! E Como se chama esse bendito livro que consegue deixar completamente maluca a mais ajuizada das raparigas?
- Acordou cheio de gracinha o menino! Deve ser já a sonhar com o jantarinho de Natal da empresa com o galã de meia tigela do Ali, não?
Bom, adiante, o livro chama-se “ Valer a pena” não conhecia o autor, um tal de Andrea Vitti, é Italiano acho!
-Um dia vão-te amar assim Béti, eu sei. E nessa altura vais quebrar o nosso pacto e não queres mais saber de mim. Eu que fui o escolhido para ser o teu cavaleiro andante!
- Olha, sabes o que tu és meu amorzinho? És louco, ciumento e invejoso mas podes estar descansado, o meu cavaleiro andante serás sempre tu! Disse com a sua tão característica e estridente gargalhada.
-Carlos! Berrou quase lhe furando os tímpanos.- Trata mas é de acordar que vou para ai! Vamos às compras e fazer um almoço tipo milagre: fantástico e baratinho. Boa?
-Boa! Anda lá minha chata querida, não descansas enquanto não me fizeres engordar e ficar um monstro gordo e feio, e depois nenhum homem me pega. É esse o teu desejo secreto, não é?
- Não tolo! É esse o meu desejo assumido. Replicou rindo. -Assim ficas todinho só para mim! Vá, beijo, tou a caminho.
Desligou.
Carlos deixou-se ficar de ronha apenas uns minutos. Sabia que a amiga ia chegar cheia de energia e queria ter já o duche tomado e café feito quando ela chegasse. Gostava de mimar a amiga com estas pequeninas coisas.
Estava a sair do duche enrolado na tolha quando ela entrou.
Tinham a chave da casa um do outro por isso bastava terem a certeza de que o outro estava sozinho para que entrassem sem tocar à campainha.
- Amor! Amor cheguei! Gritou Béti assim que pôs um pé dentro de casa.
- Entra querida Respondeu Carlos evidentemente contente com a chegada da amiga. - Tens café feito na cozinha. Eu estou a vestir-me.
- Eu sabia! Por alguma razão te escolhi para tomar conta de mim. Por seres gordo e feio e assim não corro o risco de mais ninguém te querer, porque fazes o melhor café do mundo e me enches de mimos.
-Cala-te minha gralha, ainda mal acordei já tenho que te ouvir aos berros. Pareces uma metralhadora a falar.
- Sim, Sim! Anda mas é, preguiçoso, que já é tarde e eu hoje quero um almoço maravilhoso.
Se não tenho quem me ame compenso a falta de amor com boa comida e com a tua belíssima companhia. Disse principiando a fazer um adorável beicinho que se desmanchou numa gargalhada.
-Imagina os que não tem nem amor, nem comida , nem companhia , com que é que compensam? Perguntou Carlos.
- Não faço ideia. Com liberdade talvez. Famintos, sós mas livres. Respondeu Béti perdendo o sorriso deixando vislumbrar uma nuvem de tristeza a passar-lhe mesmo em frente ao olhar.
Carlos aproximou-se e deu-lhe um beijo na testa .
-Bom dia amiga. És linda sabias?
-Sabia sim, pena que só nós dois vejamos isso e para minha desgraça tu não gostes de mulheres.
Vá mexe-te, bebe o teu café e toca a andar! E larga esse maldito espelho que estás lindo ! Disse-lhe mirando-o de alto a baixo com expressão de agrado trocista, enquanto lhe punha uma chávena de café nas mãos.
Ele bebeu o café de um trago e de mãos dadas desceram as escadas do prédio.
Carlos vivia num bairro antigo, onde ainda existiam as tradicionais mercearias e a concorrência entre elas se fazia também ainda pelo método tradicional:
Relação preço, qualidade dos produtos e qualidade do atendimento.
Béti era tão conhecida no bairro quanto ele. Toda a gente os adorava. Achavam-nos simpáticos, alegres, educados e muito prestáveis. Os mais velhos estavam convencidos que eram namorados e isso divertia-os bastante.
Os mais velhos eram mais bondosos. A sabedoria dos anos e o pavor da morte tinha-os feito perder o veneno que noutras idades quase destrói os corações. A velhice traz de volta a pureza que temos em crianças.
No caso de Béti e Carlos interessava-lhes apenas que eram dois jovens aparentemente cheios de alegria, muito educados e principalmente muito atenciosos. A simples atenção dos mais novos era coisa que os velhotes muito valorizavam e que infelizmente, na maioria dos casos,tinham muito pouco.
Saíram da mercearia ao mesmo tempo que D. Lurdes, a velhota simpática do 2ª andar do prédio mesmo em frente ao de Carlos.
- Dê cá os seus sacos D. Lurdes eu e o fortalhaço do Carlos levamos-lhe isso até a casa. Sugeriu Béti já segurando com firmeza um dos sacos.
- Já não se fazem jovens como os meninos, muito obrigada, agradeço a ajuda.
Desde que o meu Afonso morreu e a Leonor foi viver para tão longe não tenho ninguém que me ajude e confesso já me custa carregar estes pesos, é a velhice!
- Tem de arranjar um namorado D. Lurdes, que a ajude com os sacos e que a encha de mimos, aqui como o menino Carlinhos. Brincou Béti.
-Ai a malandreca! E alguem quer uma velha como eu.
- Então não? Ainda está toda jeitosa, se eu não estivesse já apaixonado eu queria certamente. Respondeu Carlos.
- Oh menino Carlos, sempre me saiu cá um galanteador! Respondeu-lhe a velhinha corando timidamente.
- Ele não está a brincar D. Lurdes, porque não vai aqui aos bailes da Associação dar um pézinho de dança de vez em quando e quem sabe arranja um velhote todo jeitoso que caia de amores por si.
- Ai filha, já não tenho espírito para isso, eu bem sei que os bailes estão cheios de velhas e velhos ainda mais velhos que eu, mas eu já não tenho amigas, nem família e uma senhora não vai ao baile sozinha. Nem sei se a frequência é própria para uma senhora assim… como eu entendem?
- Deixe lá a frequência em paz D. Lurdes. Nunca se sabe por onde andam os príncipes. E quanto à falta de companhia, não é tarde nem é cedo, considere-se convidada para o baile esta tarde. Está mais que combinado! Eu e o Carlos almoçamos e às três horas vamos busca-la para a acompanhar ao baile e atenção que não admitimos recusas, não é Carlinhos? Disse Béti com a sua habitual determinação.
-Claro, nem eu diria melhor. Concordou Carlos tentando em vão parecer também determinado.
Denunciava-o a forma como interrogava a amiga com o olhar.
-Os meninos estão mesmo a ser sinceros? De verdade que tinham paciência levarem a velhota ao baile? Dois jovens, na flor da idade, que não lhes deve faltar com que se entreterem perderem tempo com uma velhota! A velha senhora estava verdadeiramente incrédula.
-Claro que sim D. Lurdes e vai ser bem divertido!Ponha-se bonita e esteja pronta ás 3h. até logo. Respondeu Béti convincentemente sincera.
És louca Béti? Olha o fantástico programa que foste arranjar! Bela tarde! Música pimba no baile da Associação!
Só a mim e só tu para arranjares isto. Ralhou Carlos entre o zangado e o divertido.
Conhecia a amiga e não era a primeira situação semelhante que passavam juntos. A amiga alem de ter um coração de ouro tinha também um optimismo nato e uma capacidade incomparável de tornar esse optimismo contagiante. Era uma verdadeira força da natureza. Um ser impar, com uma energia fora do comum e uma bondade inigualável.
Guardaram todos os seus problemas e almoçaram entusiasmados com a ideia de acompanharem D. Lurdes ao baile.
Tinham os dois, uma forte tendência para o perfeccionismo. – Ou não se faz ou faz-se bem feito. Era uma frase comum tanto a um como a outro. Motivados por essa ideia de perfeição fizeram questão de dar alguma formalidade ao evento vestindo-se da forma elegante e discreta que acharam ser o que mais agradaria a D. Lurdes.
Podia-se dizer que Beti um segundo guarda-roupa em casa do amigo. Costumava gracejar com esse facto: -Se um dia um dos teus namorados vê a minha roupa aqui em casa acha que foi enganado e que tu gostas mesmo é de gajas.
Graças a esse segundo guarda-roupa o seu leque de opções era razoavelmente vasto. Optou por um vestido preto liso de decote redondo e discreto, apenas elegantemente acentuado na cintura por uma fita de veludo preta que apertava com um pequeno laço lateral.
Ele vestia calças pretas e uma camisa branca que contrastando com a sua pele naturalmente morena o tornava particularmente atraente e Carlos sabia-o. - Se os opostos se atraem os contrastes também devem ser atraentes não? Era uma das suas máximas no que respeitava ao seu sentido do que era esteticamente atractivo.
Estavam prontos!
Bonitos, elegantes e cheios de vontade de proporcionar a D. Lurdes uma tarde diferente das tristes tardes que tinha há já tantos anos.
Voltaram a descer as escadas juntos, desta vez de braço dado, devagar e com uma expressão de solenidade quase teatral nos rostos.
Com o mesmo porte atravessaram a rua e com de um sorriso cúmplice acentuaram mais ainda a solenidade das expressões ao tocar à campainha.
A porta a abriu-se e através do intercomunicador D. Lurdes pediu-lhes que esperassem 1 minuto: Desço já, não demoro meninos.
Escutaram-lhe os passos lentos descendo as escadas.
Ela ali estava!
10 anos mais nova.
Vestido verde-escuro em seda, lábios vermelho carmim, colar e brincos de pérolas e o cabelo bem penteado para traz acentuando-lhe a beleza invulgar do rosto.
- Que tal estou? Perguntou com uma encantadora timidez propositadamente infantil.
- Linda, uma verdadeira Princesa D. Lurdes. Respondeu Carlos genuinamente surpreso
-Sou um homem de sorte por estar acompanhado das duas mulheres mais bonitas que conheço. Não sei se sou merecedor desta honra mas prometo tentar portar-me à altura. Afirmou estendendo o braço, primeiro a D. Lurdes e depois à amiga.
-Vamos lá minhas belezas! Disse enchendo o peito de ar assumindo um estilo de machão conquistador.
-Que Atrevido! Respondeu a velha senhora dando-lhe uma leve palmadinha no ombro deixando escapar um sorriso de agrado.
Devagarinho os três de braço dado, Carlos, o cavalheiro no meio, guiando as duas senhoras caminharam para o salão de baile da Associação.
Ficava apenas um bloco abaixo dos prédios onde Carlos e a vizinha viviam mas a verdade é que nunca nenhum dos três lá tinha entrado.
Era um salão enorme e muito antigo. Tudo estava já muito envelhecido, parecendo não passar por uma renovação há muitos, muitos anos. Falta de verbas certamente.
Estava frio devido á falta de ar condicionado ou qualquer tipo de aquecimento. No conjunto o aspecto do local era algo sinistro mas os presentes pareciam não reparar e se reparavam não davam mostras de se importar nem um pouco.
Dentro daquele sitio velho, frio e húmido existia algo que Carlos e Beti não tinham visto nunca e que os deixava boquiabertos: Alegria pura!
Uma banda constituída por três elementos apenas, tocava num palco com dimensão para uma orquestra inteira.
Os homens nos seus fatos domingueiros, as senhoras nos seus melhores vestidos rodopiavam ao som da música de má qualidade e os seus rostos roborizados por algum cansaço próprio da idade já avançada eram o espelho da alegria e diversão sob a sua forma mais pura.
Estavam ali pela procura de alguma alegria e por um assumido e corajoso combate à solidão. Parecia tão simples.
Mas era mais que isso, era um tremendo acto de luta pela vida, um acto difícil e de extrema coragem. Um acto de quem não cruza os braços e alegremente luta até ao fim. Imensamente belo.
As arvores que morrem de pé.
Estes velhos queriam morrer dançando.
-Porque não é assim nos sítios que frequentamos, Carlos? Perguntou Béti, em estado de deslumbre.
- Sei lá amiga, porque somos uns parvos e preferimos encostarmo-nos ao balcão dos bares cheios de estilo e trejeitos previamente estudados à espera de engatar ou ser engatados e voltamos a casa ao fim da noite mais sós do que saímos. Ou pior ainda, voltamos acompanhados não por quem queríamos mas calhou estar disponível.
Tristes e ridículos é o que somos querida! Estes velhos são que sabem!
Agora olha minha linda arranja um senhor jeitoso que dance contigo que eu e esta linda princesa vamos mostrar quem são os reis do baile.
D. Lurdes que estava silenciosa observando tudo à sua volta e fingindo não escutar a conversa dos dois jovens, sorriu.
Acompanha-me nesta dança D. Lurdes. Perguntou Carlos, com uma vénia acompanhada de um sorriso de orelha a orelha.
-Com muito gosto cavalheiro. Respondeu-lhe a velhota com ar deliciosamente coquete de que provavelmente se devia lembrar ainda de outros tempos.
Há coisas que são como andar de bicicleta, não se esquecem nunca.
Béti, imbuída da sua lata habitual foi buscar um elegante velhote vestido de fato preto completo que ao entrar catrapiscou de imediato, destacava-se por dançar como um verdadeiro profissional. Sempre aprendo alguma coisa com esta experiência, pensou.
Carlos dançou com D. Lourdes, que parecia ir explodir de contentamento e mais uma vez se surpreendeu, desta vez por descobrir o quanto ela dançava bem.
Olhou em volta procurando a amiga com o olhar e lá estava ela, tal como já esperava, divertidíssima rindo e imitando todos os passos que o elegante velhote pacientemente lhe ia ensinando.
Voltaram a encontrar-se os três num cantinho do bar que existia no fundo do salão depois de o par de Béti a ter ido acompanhar junto dos amigos tal como mandam as regras da boa educação.
Pediram dois cafés e um sumo para a alegre e ofegante D. Lurdes.
Foi nessa altura que ele apareceu.
Aproximou-se um senhor de ar simpático e bonacheirão, cumprimentou Carlos e Beti e de seguida pousou o olhar no olhar de D. Lurdes e disse deixando transparecer algum receio:
-Estou a admirá-la de longe desde que chegou. É a mulher mais bonita deste baile e certamente das mulheres mais belas que alguma vez vi.
Desculpe o meu atrevimento, mas estou há muito sentado a ganhar coragem para lhe vir dizer isto.
-Oh, muito obrigada, é um exagero mas muito obrigada. Respondeu D. Lurdes com a face ruborizada, tão vermelha quanto as cortinas da mesma cor que existiam espalhadas pelo salão.
-O meu nome é Salvador. Informou.
-Prazer, eu chamo-me Lurdes.
-Lindo nome, próprio para uma linda senhora.
Posso convida-la para dançar, ou seria já muito atrevimento da minha parte? Perguntou o velhote.
-Eu gostava muito, os meus jovens amigos parecem já estar um pouco cansados. Sabe nas danças de hoje em dia eles quase não saem do mesmo sítio por isso não estão preparados para dançar a sério, como no nosso tempo. Disse D. Lurdes rindo divertida e galhofeira.
Carlos e Beti riram também, para eles a sucessão de acontecimentos estava em muito a ultrapassar as expectativas e encontravam-se espantados e enternecidos.
Era lindo tudo o que estava a acontecer.
No meio do salão D. Lurdes e o senhor Salvador dançavam olhando-se profundamente , e os seus passos na mais perfeita sintonia pareciam acompanhar a música do amor que se adivinhava aos poucos ir ecoando no interior dos seus solitários corações.
Carlos e Béti olharam um para o outro e sorriram. Ela deitou a cabeça ano ombro dele como costumava fazer e segredou-lhe: -Parece que sempre é verdade que o amor não escolhe idades. Será que estamos a assistir ao amor a regressar à vida destes dois velhotes?
-Parece que sim Béti. Já viste bem, é coisa de filme, de amor à primeira vista, eles dançam como se nada mais existisse à sua volta.
Ai amiga, sou mesmo maricas, até tenho lágrimas nos olhos.
-Podes crer, és sempre o mesmo chorão. Respondeu Beti gozona não tentando sequer disfarçar o brilho da comoção que também espreitava no seu olhar.
Ali se deixaram ficar encostados ao bar, uma boa hora mais, até que D. Lurdes regressasse acompanhada do seu novo amigo.
-Estou a ficar um pouco fatigada de tanto dançar. O senhor Salvador é um verdadeiro bailarino e eu já não sou uma rapariguinha nova. Gostava de voltar para casa e descansar já me diverti muito hoje.
-É natural que se sinta cansada D, Lurdes, vamos então acompanhá-la a casa. Adeus Senhor Salvador, foi um prazer. Disse Carlos estendendo a mão ao velhote.
- Adeus senhor Salvador. Béti sempre mais efusiva beijou-o na cara e piscou-lhe o olho.
- Adeus meninos, espero que nos voltemos a encontrar brevemente. Respondeu-lhes com uma leve piscadela de olho.
De seguida olhou embevecido para D. Lurdes e a voz saiu-lhe tremula de emoção:
-D. Lurdes foi uma tarde verdadeiramente maravilhosa, no próximo sábado irei espera-la à porta do seu prédio como combinamos.
Estou certo que iremos passar uma tarde mais maravilhosa ainda.
Bom descanso e não se esqueça deste velho que aqui deixou rendido aos seus encantos.
- Até sábado senhor Salvador, também achei a tarde muito agradável.
Estendeu-lhe a mão e com as mãos tocando-se levemente olharam-se nos olhos por breves segundos que para eles certamente pareceram uma eternidade tal era a intensidade do momento.
Separaram os olhares e as mãos quando a velha senhora, sorrindo, deu o braço a Carlos indicando a vontade de se retirar.
Deram uns passos em silêncio até que ela afirmou timidamente: - Para a semana venho novamente ao baile, o senhor Salvador convidou-me e ofereceu-se para me vir buscar à entrada do prédio. Um verdadeiro cavalheiro!
-Também me pareceu D. Lurdes, acho que temos aí uma paixão a caminho! Os seus olhos estão com um brilho especial. Confesse que lá D. Lurdes, ficou completamente caídinha não ficou? Perguntou Béti ansiando pela resposta.
-Quem sabe Beti o tempo o dirá.
Na minha idade aprendemos a levar a vida com calma e um dia de cada vez, vocês jovens é que querem tudo ao mesmo tempo. Os mais idosos como eu têm a calma que a vida nos ensina. Alem disso a memória do meu Afonso ainda está muito presente. Não vou esquece-lo nunca! D. Lurdes falava calma ponderadamente, com a certeza da sabedoria contida nas suas palavras. Um saber que se adquire apenas com a experiência de já muitos anos de vida.
-Tem razão D. Lurdes. Assentiu Carlos. – Mas o Senhor Afonso morreu e poderá respeita-lo na sua memória sempre. O Senhor Salvador está vivo e pelo que vi completamente apaixonado. Está sempre a tempo de começar de novo.
-Quem sabe, Carlos, quem sabe. O amor que vivi com o meu marido foi muito forte, não se pode viver outro assim. Mas gostava de uma companhia isso é verdade. Gostava de começar de novo, como tu disseste, Carlinhos. Estas palavras disse-as baixinho, mais como se estivesse entregue aos seus pensamentos do que a falar para Carlos e Béti.
-Até amanha meus meninos e muito obrigada pela tarde maravilhosa, pensei que nunca mais ia voltar a divertir-me assim, e agora...! Voltou costas deixando a frase a meio.
Carlos e Béti subiram as escadas do prédio a correr. Assim que entraram e Beéti atirou-se para cima do sofá olhou para o amigo e perguntou.
-Carlos, achas que o marido da D. Lurdes a penetrava com a alma?
Como no livro que estou a ler.
-Acho, Béti. Tenho a certeza. Era amor amiga. Amor verdadeiro. Por isso é tão difícil esquecê-lo mesmo depois de morto.
Mas também acho que mesmo não o conseguindo esquecer nunca a D. Lurdes está preparada para começar de novo.
-Começar de novo. Começar de novo. Sim, começar de novo. Repetiu várias vezes Béti pensativa, distante, impenetrável.
Isabel
Fotografia José Arruda